Ao longo do dia e da noite, o líquido cefalorraquidiano (LCR) pulsa através de pequenos canais cheios de líquido que circundam os vasos sanguíneos do cérebro, chamados espaços perivasculares, para eliminar resíduos do metabolismo neural e conter a neuroinflamação.
Uma eventual interrupção ou retardo relacionados a esse processo vital pode levar a disfunções neurológicas, declínio cognitivo ou atrasos no desenvolvimento. Uma pesquisa recente identificou associação relevante entre o aumento desses espaços perivasculares e o transtorno do espectro do autismo (TEA).
Um estudo revelador sobre autismo e o sistema glinfático
A pesquisadora Dea Garic (PhD) da University of North Carolina nos EUA, junto a seus colaboradores, conduziu um estudo de coorte com 311 bebês com maior probabilidade de desenvolver autismo, porque tinham um irmão mais velho com TEA. Eles acompanharam essas crianças dos 6 aos 24 meses de idade, antes da idade de diagnóstico do transtorno. O estudo intitulado Enlarged Perivascular Spaces in Infancy and Autism Diagnosis, Cerebrospinal Fluid Volume, and Later Sleep Problems foi publicado na JAMA Network Open no final do ano passado.
Os pesquisadores descobriram que 30% das crianças que mais tarde desenvolveram TEA tinham cérebros com espaços perivasculares aumentados aos 12 meses. Aos 24 meses de idade, quase metade das crianças diagnosticadas com autismo apresentava espaços perivasculares aumentados.
Um olhar sobre a dinâmica do líquido cefalorraquidiano
A compreensão da importância da dinâmica do líquido cefalorraquidiano (LCR), ou somente liquor, tem evoluído rapidamente, com evidências emergentes indicando que o movimento do LCR é fundamental para a manutenção da saúde cerebral. O liquor circula através do tecido cerebral através dessa rede recentemente descoberta de espaços perivasculares, agora reconhecida como o sistema glinfático. Para ler mais sobre esse sistema, sugerimos esse outro artigo publicado aqui no site: sistema glinfático: o que é e qual sua importância?
Como já foi mencionado, os espaços perivasculares, também conhecidos como espaços de Virchow-Robin, são canais revestidos pela meninge pia-máter que circundam pequenos vasos sanguíneos no cérebro e facilitam a troca de liquor e fluido intersticial. Essa troca envolve a biodisponibilidade de fatores de crescimento e a remoção de solutos neuroinflamatórios para manter a homeostase neural. Está muito bem documentado que esses espaços difusamente distribuídos pelo cérebro desempenham um papel crucial na eliminação de resíduos neurais, sendo sua disfunção associada a inúmeros distúrbios neurológicos, declínio cognitivo e neurodegeneração associados ao envelhecimento.
Durante a infância, o cérebro e o sistema liquórico passam por um rápido crescimento e podem ser particularmente vulneráveis à dinâmica prejudicada do líquido cefalorraquidiano. Dados limitados sugerem que as crianças com espaços perivasculares aumentados têm quase 5 vezes mais probabilidade de apresentarem atraso no neurodesenvolvimento e 12 vezes mais probabilidade de terem problemas psiquiátricos. Muito pouco além disso foi pesquisado sobre o sistema glinfático na primeira infância e sua relação com o desenvolvimento de certas patologias.
De relevância, podemos citar uma pesquisa prévia liderada pelo próprio pesquisador Mark Shen (PhD). Em três estudos independentes realizados anteriormente, ele junto a seus colaboradores já haviam relatado um volume excessivo de liquor no espaço subaracnóideo (liquor extra-axial) em bebês e crianças a partir dos 6 meses de idade que foram posteriormente diagnosticados com autismo.
O que se sabe é que através de uma circulação e absorção efetivas, o volume do liquor extra-axial diminui ao longo dos primeiros 2 anos de vida. Se houver um déficit na absorção, acredita-se que o acúmulo desse liquor observado no autismo contribua para uma dilatação posterior dos espaços perivasculares à medida que as suturas cranianas se fecham e, assim, forçar o liquor para dentro do parênquima cerebral.
O estudo de 2023 confirmou que o volume excessivo de liquor aos 6 meses estava associado ao aumento dos espaços perivasculares aos 24 meses em todos os bebês, independentemente da probabilidade ou do diagnóstico de autismo. Ou seja, a associação entre os espaços perivasculares cerebrais e o liquor extra-axial poderia ser encarado como um processo fisiológico do desenvolvimento do sistema glinfático nos primeiros 2 anos de vida.
Implicações para o sono das crianças autistas
A relação entre TEA e sono é significativa. Crianças (e também adultos) com sintomas autistas frequentemente apresentam distúrbios do sono e alterações no ciclo circadiano. Crianças e adultos com sintomas autistas apresentam mutações e polimorfismos na expressão de genes CLOCK que se relacionam com fases irregulares e atrasadas do sono e com outros distúrbios do mesmo. Além disso, anormalidades na expressão dos genes que regulam a melatonina podem ser responsáveis pelos baixos níveis desse hormônio e pelos distúrbios do ciclo circadiano em indivíduos com sintomas autistas.
É uma via de mão dupla: o comprometimento do ritmo circadiano do sono pode aumentar a vulnerabilidade do indivíduo para desenvolver sintomas do TEA.
Sobre o sono e o sistema glinfático
A cada 6 horas, o cérebro expele uma onda de liquor que flui através dos espaços perivasculares para remover proteínas associadas à neuroinflamação potencialmente prejudiciais, como a beta amilóide, que se acumulam no cérebro. O processo de limpeza liquórica é especialmente eficiente quando dormimos, pois a maior parte da circulação e eliminação do liquor ocorre durante o sono. A interrupção do sono pode, portanto, reduzir a depuração liquórica dos espaços perivasculares, levando à dilatação ou alargamento dos mesmos.
Os pesquisadores levantaram a hipótese de que anormalidades na fisiologia do liquor na infância estariam relacionadas a problemas de sono posteriores. A análise atual do sono revelou que crianças que tinham espaços perivasculares aumentados aos 2 anos de idade apresentavam taxas mais elevadas de distúrbios do sono na idade escolar.
Em resumo, o sistema glinfático pode estar desregulado em bebês que desenvolvem autismo e apresentem concomitantemente distúrbios do sono.
Referências e Leitura Complementar:
- Garic, D., McKinstry, R. C., Rutsohn, J., Slomowitz, R., Wolff, J., MacIntyre, L. C., … & Torres, S. (2023). Enlarged perivascular spaces in infancy and autism diagnosis, cerebrospinal fluid volume, and later sleep problems. JAMA Network Open, 6(12), e2348341-e2348341. ➞ Ler Artigo
- Shen, M. D., Nordahl, C. W., Young, G. S., Wootton-Gorges, S. L., Lee, A., Liston, S. E., … & Amaral, D. G. (2013). Early brain enlargement and elevated extra-axial fluid in infants who develop autism spectrum disorder. Brain, 136(9), 2825-2835. ➞ Ler Artigo
- Shen, M. D., Kim, S. H., McKinstry, R. C., Gu, H., Hazlett, H. C., Nordahl, C. W., … & Gu, H. (2017). Increased extra-axial cerebrospinal fluid in high-risk infants who later develop autism. Biological Psychiatry, 82(3), 186-193. ➞ Ler Artigo
- Shen, M. D., Nordahl, C. W., Li, D. D., Lee, A., Angkustsiri, K., Emerson, R. W., … & Amaral, D. G. (2018). Extra-axial cerebrospinal fluid in high-risk and normal-risk children with autism aged 2–4 years: a case-control study. The Lancet Psychiatry, 5(11), 895-904. ➞ Ler Artigo
- Williams Buckley, A., Hirtz, D., Oskoui, M., Armstrong, M. J., Batra, A., Bridgemohan, C., … & Ashwal, S. (2020). Practice guideline: Treatment for insomnia and disrupted sleep behavior in children and adolescents with autism spectrum disorder: Report of the Guideline Development, Dissemination, and Implementation Subcommittee of the American Academy of Neurology. Neurology, 94(9), 392-404. ➞ Ler Artigo
- Carmassi, C., Palagini, L., Caruso, D., Masci, I., Nobili, L., & Vita, A. (2019). Systematic review of sleep disturbances and circadian sleep desynchronization in autism spectrum disorder: toward an integrative model of a self-reinforcing loop. Frontiers in Psychiatry, 10, 456337. ➞ Ler Artigo