Antes se pensava que somente mudanças funcionais seriam possíveis no cérebro adulto. No entanto, hoje está muito bem demonstrado que as redes neurais também passam por remodelações estruturais. A relação entre sono e neuroplasticidade é um tema muito estudado pela neurociência. O objetivo deste artigo é explorar especificamente o sono e sua influência na estrutura cerebral.
A diferença entre neuroplasticidade funcional e estrutural
A plasticidade funcional refere-se à capacidade do cérebro de ajustar os padrões de capacidade de resposta e atividade dos neurônios, sinapses e circuitos neurais. Ela atua no nível molecular, principalmente por meio de modificações na liberação pré-sináptica de neurotransmissores, níveis de receptores pós-sinápticos, vias de sinalização intracelular, expressão gênica e síntese de proteínas, que juntos influenciam o disparo neuronal e a magnitude da transmissão sináptica.
A plasticidade estrutural, por sua vez, refere-se à capacidade do cérebro de ajustar a morfologia neuronal e os aspectos estruturais da conectividade neuronal. Atua no nível celular por meio de mudanças dinâmicas nas estruturas celulares com consequências funcionais.
Os mecanismos de plasticidade estrutural variam desde modificações sutis, como remodelamento sináptico e mielinização de axônios, até mudanças mais dramáticas, como a geração de novos neurônios (neurogênese) e alterações macroscópicas dos tratos, lobos e hemisférios cerebrais.
Como mencionado acima, a plasticidade cerebral opera em dois níveis: funcional e estrutural. A seguir, confira mais detalhes sobre como a neuroplasticidade estrutural se manifesta, em especial no cérebro humano, por meio das condições e estímulos oferecidos durante o sono.
Remodelamento sináptico através do sono
O entendimento do que de fato ocorre ao nível das sinapses durante o sono ainda é motivo de controvérsia entre os neurocientistas. O que se sabe: após sua formação inicial durante o aprendizado, as memórias são processadas posteriormente no cérebro durante os dias subsequentes para consolidação a longo prazo, com o sono desempenhando um papel fundamental nesse processo.
Estudos já demonstraram inclusive que os padrões de atividade neuronal durante o período de vigília são repetidos no hipocampo durante o sono, o que pode coordenar a reativação cerebral levando à consolidação da memória. Essa “repetição” da atividade durante o sono provavelmente desencadeia mudanças plásticas na transmissão sináptica, promovendo o substrato celular da memória, em várias regiões do cérebro, etapa crítica para a formação da memória de longo prazo.
Alguns estudiosos acreditam que duas formas de plasticidade sináptica (potencialização e depressão da transmissão sináptica), são induzidas em paralelo durante o sono, por vezes variando em relação à região cerebral. Uma das visões, conhecida como hipótese da homeostase sináptica, sugere que a vigília promove a potencialização sináptica (upscalling), enquanto o sono facilita a redução da escala sináptica (downscalling). De acordo com essa hipótese, a privação do sono levaria a déficits cognitivos devido à saturação das conexões neuronais.
Pesquisas mostram que o sono é essencial para a consolidação da memória e aprendizado, e que o cérebro passa por processos importantes de reorganização e reestruturação durante o sono. Em resumo, durante o sono o cérebro parece se livrar de conexões sinápticas “desnecessárias”, ao mesmo tempo em que “reforça” as conexões mais importantes para determinada memória e aprendizagem, “liberando” por fim recursos cerebrais para um novo dia de aprendizagem.
As espinhas dendríticas, também conhecidas como espículas dendríticas, são os principais locais de transmissão sináptica no sistema nervoso central. Alterações na força das conexões sinápticas afetam diretamente a comunicação neuronal, crucial para o funcionamento cerebral e o processamento de informações. Evidências científicas indicam que tanto o sono quanto a privação do sono afetam a neuroplasticidade estrutural das espinhas dendríticas, especialmente em relação à quantidade e forma delas.
Portanto, a plasticidade estrutural sináptica, ou a capacidade dos neurônios de reorganizar sua forma e conexões em resposta ao ambiente e à experiência, está intimamente ligada a ele. A análise em modelos animais demonstra que o sono regula a força, o número, a composição e a morfologia das sinapses. Consequentemente o hábito de dormir bem favorece o aprendizado, a memória, o humor e os comportamentos sociais mais ajustados.
Sono e produção neuronal
Pesquisas indicam que o sono não apenas influencia a criação de vínculos entre as células nervosas, por meio da reestruturação dos processos neuronais e dos botões sinápticos, mas também o faz promovendo a geração de novas células cerebrais, ainda que de forma relativamente tímida. Durante o estado de sono, ocorre a ativação de processos subcelulares que estimulam a produção de novas células nervosas, reforçando o exército neuroplástico cerebral.
Podemos assumir com um bom nível de evidência que a neurogênese persiste ao longo da vida nos mamíferos, incluindo nos humanos, sobretudo no giro denteado hipocampal. Apesar de sua escassez e atividade infrequente, os novos neurônios gerados parecem contribuir significativamente com a nossa sobrevivência através de uma plasticidade peculiar. Para começo de conversa, essas jovens células nervosas hipocampais mostram comparativamente uma maior plasticidade sináptica e, portanto, podem ser preferencialmente recrutadas nos traços de memória. Neurônios recém-nascidos exibem robusta potenciação de longo prazo e mostram um limiar mais baixo para sua indução, tornando-os fortes candidatos a serem recrutados por ativação comportamental. Além disso, a própria integração sináptica dos novos neurônios a um circuito neuronal existente pode ser considerada como forma complementar de plasticidade.
De fato, há evidências de que a quantidade de neurogênese adulta se correlaciona com a força e persistência das memórias. Há evidências causais de que mesmo uma atividade esparsa dos jovens neurônios nascidos no cérebro adulto, durante o sono REM, seja necessária para a consolidação da memória. Vale lembrar aqui que consolidação da memória é igual a uma modificação na estrutura cerebral.
Em outras palavras, o sono adequado é responsável pela memorização de longo prazo também através da promoção da neoneurogênese hipocampal. O sono e os ritmos circadianos são sugeridos como moduladores-chave da plasticidade nas redes neurais, resultando em alterações no aprendizado, memória, desempenho cognitivo e regulação emocional.
Sono vs espessura cortical
O sono de duração e qualidade insuficientes foi associado à atrofia cerebral acelerada. Em relação à duração do sono, a National Sleep Foundation recomenda idealmente pelo menos 7 horas de sono por dia para adultos, respeitando é claro as variabilidades individuais na necessidade de sono.
Em uma pesquisa publicada no periódico científico Sleep em 2016, indivíduos idosos cognitivamente normais que relataram dormir menos ou mais de 7 horas por dia apresentaram uma diminuição relativa da espessura cortical, especialmente nas regiões frontotemporais.
Em uma outra análise multivariada publicada na Communications Biology, evidências sugerem uma relação compartilhada entre sono, inteligência e espessura cortical nas redes frontoparietais, que suportam a atenção sustentada, bem como na rede de modo padrão, implicada no pensamento não relacionado à tarefa, ou seja, quando a mente divaga e o indivíduo se encontra desfocado do mundo exterior.
O aumento da espessura cortical foi associado a padrões de sono mais saudáveis desde o final da infância até o meio da adolescência. Em um dos primeiros estudos do tipo a demonstrar que a estrutura cerebral está relacionada a diferenças individuais nos padrões naturais de sono em diferentes idades, o córtex mais espesso em várias regiões do cérebro foi associado a um sono “mais saudável” (mais longo, contínuo e precoce) durante o final da infância e início da adolescência. A pesquisa foi publicada no periódico Sleep em 2021.
Uma observação importante: em linhas gerais, um grande número de evidências apontam para uma relação significativa entre alterações estruturais do córtex cerebral e a qualidade do sono, bem como seus extremos de duração. No entanto, ainda carecemos de resultados mais conclusivos em relação à especificidade, uniformidade e constância dessas descobertas. O mesmo vale para a análise da substância branca, que veremos a seguir.
Sono vs integridade da substância branca
Embora o volume de substância branca não tenha sido associado ao sono noturno ou à qualidade do sono em adultos jovens e idosos, o comprometimento da integridade da substância branca em indivíduos privados de sono pôde ser detectada em exames de neuroimagem (tractografia).
A descoberta foi publicada na revista Frontiers in Aging Neuroscience em 2021. O sono curto e fragmentado foi relacionado à diminuição da integridade da substância branca principalmente nos tratos frontotemporais e frontosubcorticais dos indivíduos avaliados. Com base nessas evidências científicas, conclui-se que o sono afeta a integridade da substância branca, mas sem uma correlação significativa com sua atrofia macroscópica.
De acordo com modelos animais, o sono também influencia a expressão gênica e a regulação epigenética no tecido cerebral. Especificamente, a expressão de genes envolvidos na síntese de fosfolipídios e na proliferação de oligodendrócitos aumenta significativamente durante o sono, auxiliando na manutenção da integridade da substância branca. Além disso, a expressão de genes que regulam o sistema antioxidante, as respostas imunológicas ao estresse e a plasticidade neuronal é bastante sensível à privação do sono, o que ajuda a reforçar também do ponto de vista genético o papel do mesmo nas alterações tróficas cerebrais.
Sono vs volume cerebral
Um assunto que sempre despertou debate entre os neurocientistas é a relação entre sono e volume cerebral. Com o objetivo de tentar elucidar melhor esse tema, pesquisadores da universidade de Oxford delinearam um interesse estudo a partir de dados relativos a adultos e idosos computados no UK Biobank.
Indivíduos que dormiam entre 6 a 8 horas apresentaram um volume de massa cinzenta significativamente maior em 46 das 139 regiões cerebrais destacadas, incluindo o córtex orbitofrontal, hipocampo, giro pré-central, pólo frontal direito e subcampos cerebelares.
Várias dessas regiões do cérebro mostraram uma relação quadrática entre a duração do sono e seu volume, enquanto outras regiões eram menores apenas em indivíduos que dormiam mais. Nenhuma região do cérebro foi menor no grupo de duração do sono de 6 a 8 horas.
Essas descobertas destacam a importante relação entre um fator de estilo de vida modificável – a duração do sono – e a saúde estrutural do cérebro. Mais pesquisas são necessárias para aprofundar a causalidade nessa relação: o sono gera tal alteração cerebral, o contrário ou ambos? Aguardamos com ansiedade por mais evidências.
Por fim, um estudo recente e muito interessante publicado há algumas semanas na Sleep Health investigou o cochilo e sua relação com a macroestrutura cerebral. Os resultados sugeriram uma associação causal modesta entre cochilos diurnos habituais e um maior volume cerebral total. A soneca diurna já havia sido associada à função cognitiva e à saúde do cérebro em estudos observacionais.
Considerações finais
O sono, a estrutura e a função do cérebro estão fortemente interconectados. A relação bidirecional entre sono e neuroplasticidade parece ser crucial para a consolidação estrutural do cérebro humano. Se, por um lado, a arquitetura neural impacta a variabilidade das oscilações do sono entre os indivíduos, por outro, o sono afeta significativamente o metabolismo, a expressão gênica e, consequentemente, a integridade de todo o tecido cerebral.
A recomendação é sempre intercalar o seu dia a dia com uma boa noite de sono reparadora, um hábito essencial para conservar seu cérebro e sua flexibilidade cognitiva.
Referências e Leitura Complementar:
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