A expectativa de vida dos brasileiros gira em torno dos 75 anos, com alguns anos a mais para as mulheres. Mas, será que a vida útil do cérebro também acompanha essa idade? Muita gente anda preocupada com o futuro do próprio cérebro.
Lapsos de memória, problemas de concentração, velocidade reduzida de raciocínio e desregulação emocional são apenas algumas das condições temidas. Nunca se exigiu tanto das funções cognitivas. O mundo está acelerado e perdemos o senso de produtividade diante de tanta conectividade e informação. A internet publica diariamente inúmeras dicas e fórmulas voltadas para otimizar as funções cerebrais e, mais do que isso, preservá-las. Às vezes, ficamos perdidos…
Por outro lado, a ciência avança. Os cientistas têm tentado determinar quando é que o cérebro começa a apresentar um declínio de suas funções.
Maturação da cognição e da emocionalidade
Antes de tentar determinar a idade de início do declínio das funções cerebrais, é importante conhecer como se dá a maturação cerebral, tanto cognitiva como emocional, nas primeiras décadas de vida.
Lançando mão de uma análise bem robusta de dados, metodologia, revisões sistemáticas, metanálises e revisões narrativas coletadas, um relatório publicado pela Universidade de Edimburgo em 2020 reuniu os atuais conhecimentos neurobiológicos e neuropsicológicos sobre a maturação cerebral de adolescentes e adultos jovens para embasar cientificamente os processos de condenação juvenil.
Em linhas gerais, durante a adolescência e o desenvolvimento individual normal, um padrão de crescimento desequilibrado é observado entre as regiões do cérebro que governam a emoção e o humor, como a amígdala, e aquelas envolvidas em funções executivas (que fornecem as habilidades cognitivas necessárias para o comportamento pró-social, planejamento e realização bem-sucedidos de metas), como o córtex pré-frontal.
Descobertas convergentes sugerem que essa área cortical mais anterior do cérebro é justamente a última a atingir a maturidade, o que explica em grande a imaturidade e o comprometimento das habilidades cognitivas essenciais observadas nos adolescentes. Tal imaturidade, quando aliada ao aumento da motivação para alcançar recompensas, um comportamento típico da puberdade, é considerado o mecanismo subjacente mais provável que contribui para a má resolução de problemas, mau processamento de informações, má tomada de decisão e comportamentos de risco muitas vezes relacionados à adolescência.
É preciso salientar que esse processo de amadurecimento cognitivo/emocional é influenciado por diversos fatores e tem caráter individual. Evidências sugerem, por exemplo, que a influência ou presença de pares exacerba essas tendências comportamentais. Para além da influência social, o desenvolvimento neurocognitivo do adolescente pode ser prejudicado ou comprometido por diversos outros fatores, incluindo a lesão cerebral traumática, uso de álcool e outras substâncias, transtornos psiquiátricos e do neurodesenvolvimento, experiências adversas na infância, todos os quais têm o potencial de inibir e perturbar o desenvolvimento típico.
Segundo a pesquisadora Suzanne O’Rourke e os demais colaboradores do documento, a natureza do desenvolvimento cognitivo humanon não é um processo que nos permite especificar uma idade exata em que a maturidade cognitiva é definitivamente alcançada em nível individual. Apesar disso, para fins de uma avaliação de responsabilidade jurídica, é recomendado que tais noções do desenvolvimento continuado do cérebro, até os 25-30 anos de idade, seja considerado.
Algo interessante a ser notado é que o pico desse amadurecimento cerebral coincide justamente com o período em que parece iniciar o declínio das funções cerebrais, pelo menos quando tais funções são medidas do ponto de vista neuropsicológico.
Primeiras evidências do declínio cognitivo
Até o final do século passado e começo dos anos 2000, muitos documentos na literatura produziram numerosas afirmações de que o declínio cognitivo começaria tarde na vida:
“O declínio cognitivo pode começar após a meia-idade, mas ocorre mais frequentemente em idades mais avançadas (70 anos ou mais).” (Aartsen et al., 2002)
“Relativamente pouco declínio no desempenho ocorre até as pessoas terem cerca de 50 anos de idade.” (Albert e Heaton, 1988)
“As capacidades cognitivas geralmente permanecem estáveis ao longo da vida adulta até cerca dos 60 anos.” (Plassman et al., 1995)
“Nenhuma ou pouca queda no desempenho antes dos 55 anos.” (Ronnlund et al., 2005)
“A maioria das habilidades tende a atingir o pico no início da meia-idade, estabilizando até o fim dos anos 50 ou 60, e depois mostram declínio, inicialmente a um ritmo lento, mas acelerando à medida que se atinge o final dos anos 70.” (Schaie, 1989)
Todas essas evidências contrastaram de forma flagrante com as comparações transversais de idade realizadas em 2009, pelo pesquisador Timothy Salthouse, da Universidade da Virgínia. O estudo, intitulado When does age-related cognitive decline begin? avaliou as habilidades cognitivas de 2 mil pessoas e revelou consistentemente reduções quase contínuas relacionadas à idade em variáveis neurobiológicas relevantes e em várias medidas de desempenho cognitivo que parecem começar quando os adultos estão na faixa dos 20 ou 30 anos. Muito mais cedo do que se pensava…
A conclusão é que o declínio cognitivo começa logo após os indivíduos atingirem a maturidade. Confira os resultados:
- Auge: o pico do funcionamento cerebral seria aos 22 anos, permanecendo otimizado por aproximadamente 5 anos;
- Declínio: a partir dos 27 anos, a maior parte das funções cerebrais começaria a declinar;
O que aconteceu objetivamente quando as pessoas acompanhadas no estudo completaram 30 anos de idade? A memória declinou em 17%, a velocidade mental em 27,3% e o raciocínio lógico em 37,5%.
A explicação que os cientistas atribuem a esses dados é evolutiva. Segundo eles, o pico de atividade cerebral parece acompanhar a idade reprodutiva. Apesar de cada vez mais adiarmos a concepção de descendentes, ou mesmo optarmos por não termos filhos, por questões morais, religiosas e/ou econômicas, a faixa etária que vai do final da adolescência e se estende aos 30 anos continua sendo a mais propicia biologicamente para a concepção. Passado isso, o cérebro meio que entraria em um estado de latência funcional.
Muitos questionamentos emergem disso…
Inteligências fluida e cristalizada
O primeiro ponto a ser considerado diz respeito a quais parâmetros estão sendo considerados quando estamos nos referindo a conceitos como declínio e funcionamento cerebral ótimo. Como já foi possível observar em diversas discussões neurocientíficas, o cérebro tem sua atuação de forma muito individualizada, contextual e variável em acordo com uma série de fatores. O que pode ser tido como uma função ótima do cérebro em em contexto, pode não o ser em outro.
Um exemplo disso é a comparação da inteligência fluida e inteligência cristalizada ao longo da vida. A primeira envolve a capacidade de raciocinar e pensar com flexibilidade, enquanto a última se refere ao acúmulo de conhecimentos, fatos e habilidades que são adquiridos ao longo dos anos. Proposta pela primeira vez pelo psicólogo Raymond Cattell, essa é uma das muitas teorias de inteligência em psicologia.
Os padrões de inteligência fluida e cristalizada tendem a mudar ao longo da vida, com certas habilidades mentais atingindo picos em diferentes pontos.
Acredita-se que a inteligência fluida global atinja o seu pico bastante cedo na vida, apesar de que evidências mais recentes sugerem que alguns aspectos da inteligência fluida podem atingir o ápice por volta dos 40 anos de idade. A inteligência cristalizada, por sua vez, tende a atingir o seu nível ótimo mais tarde na vida, atingindo o ápice por volta dos 60, 70 anos.
Apenas um exemplo de como funções cognitivas específicas declinam de forma diferente ao longo da vida, tornando difícil e improvável o estabelecimento de uma idade absoluta de corte para o arrefecimento das funções mentais.
Sem pânico! O cérebro se adapta muito bem
Apesar de muitas dessas funções isoladamente serem susceptíveis a um declínio com o avançar da idade, de forma global, o cérebro desevolve mecanismos compensatórios para manter seu funcionamento adequado em condições fisiológicas.
Em outras palavras, a perda neuronal da ordem de 2% aproximadamente (leia este artigo para saber mais), e diversos mecanismos de compensação neural envolvendo neuroplasticidade, recrutamento de sinapses quiescentes e novos padrões de funcionamento neuroelétrico são capazes de manter a aptidão das funções cognitivas, bem como a regulação emocional ótima até o fim da vida.
Conclusão: uma visão determinista sobre o declínio das funções cerebrais com a idade não só não deve ser estimulada, como é falha do ponto de vista neurocientífico, diante das evidências mais recentes. O cérebro é capaz de desenvolver muitas alternativas para retardar o declínio funcional neurológico normal a que está sujeito. Reconheça comportamentos desadaptativos que podem interferir na saúde dos seus neurônios, e modifique o curso da sua tomada de decisão.
Como vimos, certas habilidades, como a linguagem verbal, continuam a se desenvolver por décadas. Vale ressaltar como hábitos saudáveis como atividade física, alimentação saudável e o sono reparador são importantíssimos pilares para a saúde do nosso cérebro. Indicamos o terceiro episódio do nosso podcast que trata justamente sobre esse assunto. Clique aqui para conferir.
Por milhares de anos temos ampliado a nossa expectativa de vida, que era estimada em 30 anos na época em que os nossos ancestrais ainda viviam nas cavernas. Está na hora de ampliar também a nossa capacidade cerebral ao longo do tempo, sobretudo no que diz respeito a uma visão mais otimista (e realista) sobre nós mesmos. O que você tem feito para isso?
Referências e Leitura Complementar:
- O’Rourke, S., Whalley, H., Janes, S., MacSweeney, N., Skrenes, A., Crowson, S., … & Schwannauer, M. (2020). The Development of Cognitive Emotional Maturity in Adolescents and its Relevance in Judicial Contexts: Literature Review. The University of Edinburgh. ➞ Ler Artigo
- Salthouse, T. A. (2009). When does age-related cognitive decline begin?. Neurobiology of Aging, 30(4), 507-514. ➞ Ler Artigo
- Hartshorne, J. K., & Germine, L. T. (2015). When does cognitive functioning peak? The asynchronous rise and fall of different cognitive abilities across the life span. Psychological Science, 26(4), 433-443. ➞ Ler Artigo
- Johnson, J., & Finn, K. (2017). Designing user interfaces for an aging population: Towards universal design. Morgan Kaufmann. ➞ Ler Artigo
- Jha, S. K. (2023). Compensatory cognition in neurological diseases and aging: a review of animal and human studies. Aging Brain, 3, 100061. ➞ Ler Artigo