Se existir essa opção, um estudo revelou que a maioria dos ratos escolherá açúcar em vez de cocaína. O desejo desses animais por carboidratos é tão intenso que eles chegam a ponto de autoadministrar choques elétricos desesperadamente para consumir o líquido açucarado. Mas os ratos não estão sozinhos neste comportamento disfuncional. Os humanos, ao que parece, fazem algo semelhante.
A percepção do sabor doce é uma capacidade inata dos animais que depende de receptores específicos localizados na língua. A estimulação desses receptores por dietas ricas em sabores doces, como, por exemplo, bebidas açucaradas (refrigerantes, refrigerantes, refrigerantes de frutas), gera uma sensação que a maioria dos mamíferos, incluindo os humanos, consideram intensamente gratificante.
Antes reservado a uma pequena elite, o consumo de dietas altamente açucaradas é agora altamente prevalente nos países desenvolvidos e está a aumentar noutros lugares. Embora difíceis de estimar, as sensações doces evocadas por alimentos e bebidas açucaradas são provavelmente um dos prazeres sensoriais mais precoces, frequentes e intensos dos humanos contemporâneos. No entanto, a busca atual por sensações doces excede em muito as necessidades metabólicas e acredita-se que contribua, juntamente com vários outros fatores, para impulsionar a atual epidemia de obesidade.
Efeitos cognitivos do açúcar
Antes de mais nada, é importante ressaltar que a glicose é o principal combustível das células nervosas. Talvez em função disso, estudos observaram efeitos agudos de facilitação do açúcar (glicose) na função cognitiva após jejum de 2 a 12 horas.
Estudos de coorte de longo prazo e estudos transversais em humanos, por outro lado, encontraram associações significativas entre o consumo de açúcares adicionados, especificamente bebidas adoçadas com açúcar, e função cognitiva reduzida, baixo desempenho de memória e maior risco de comprometimento cognitivo. Os impactos negativos do açúcar na função cognitiva parecem estar associados ao consumo excessivo, a longo prazo e pré-natal, particularmente do xarope de milho rico em frutose encontrado nas bebidas artificialmente adoçadas.
Açúcar, uma nova droga de abuso?
O consumo excessivo passivo de dietas adoçadas com açúcar tem sido frequentemente comparado à dependência de drogas, embora este paralelo se baseasse, até muito recentemente, mais em provas anedóticas do que em bases científicas sólidas
Mais recentemente, evidências crescentes de pesquisas experimentais em animais, especialmente ratos, revelaram profundos pontos em comum entre o consumo excessivo de açúcares e a dependência de drogas. Primeiro, tanto os sabores doces quanto as drogas de abuso estimulam a sinalização de dopamina no corpo estriado ventral, uma via de sinalização cerebral criticamente envolvida no processamento e aprendizagem de recompensas. Em segundo lugar, tanto a tolerância cruzada quanto a dependência cruzada foram observadas entre açúcares e drogas de abuso. Por exemplo, animais com uma longa história de consumo de sacarose tornam-se tolerantes aos efeitos analgésicos da morfina.
Além disso, a naloxona – um antagonista de opiáceos – precipita em ratos com consumo excessivo de açúcar alguns dos sinais comportamentais e neuroquímicos da abstinência de opiáceos. Esta última observação é importante porque mostra que o consumo excessivo de bebidas açucaradas pode induzir um estado semelhante ao de dependência. Finalmente, estudos recentes de neuroimagem em humanos descobriram recentemente neuroadaptações no cérebro de indivíduos obesos que imitam aquelas observadas anteriormente em indivíduos viciados em cocaína e outras drogas de abuso.
No geral, existem muitas semelhanças comportamentais e biológicas entre bebidas açucaradas e drogas de abuso. No entanto, o potencial viciante do primeiro em relação ao segundo é muito menos claro. Pesquisas anteriores mostraram que o acesso simultâneo a água altamente adoçada (sacarina mais glicose) pode reduzir a autoadministração de baixas doses de cocaína em ratos não dependentes, sugerindo que a água adoçada pode superar a recompensa da cocaína – uma das substâncias mais viciante e prejudicial conhecidas. No entanto, ainda não foi estabelecido se este efeito resulta de uma preferência genuína por doçura intensa ou de outros fatores (por exemplo, utilização de uma dose subóptima de cocaína e/ou falta de dependência de cocaína).
O cérebro dependente de açúcar vs o cérebro dependente de cocaína
Em uma pesquisa polonesa recente, intitulada ‘Whole-brain tracking of cocaine and sugar rewards processing’ e publicada no periódico Translational Psychiatry, Łukasz Bijoch e colaboradores demonstraram que a maioria das estruturas cerebrais ativadas pelo consumo de açúcar e pelo uso de drogas se sobrepõem. No entanto, a análise de mais de 400 estruturas cerebrais atestaram que, embora o primeiro contato com o açúcar provoque uma resposta massiva em todo o cérebro, mesmo fora do sistema de recompensa, o primeiro contato com a droga não foi tão intenso.
Os pesquisadores observaram alterações no cérebro dos ratos em duas etapas: imediatamente após o primeiro contato com a recompensa e após sete dias de exposição diária. Isso tanto para o açúcar como para a cocaína.
Quando foi ofertado o açúcar, o experimento mostrou que a primeira exposição causou uma enorme ativação em praticamente todo o cérebro, não apenas no sistema de recompensa. Isso mostra o quão importante é para o organismo a informação sobre o acesso a alimentos doces (e, portanto, calóricos). Mas em ratos que tiveram acesso a água doce durante sete dias, tal ativação global não foi vista. Depois desse período as informações sobre o acesso à recompensa foram memorizadas, e o açúcar deixou de ser um novo estímulo para eles.
E relação à cocaína, a situação foi diferente. Embora o primeiro contato com ela não tenha causado tantas alterações quanto o primeiro contato com o açúcar, o acesso mais prolongado à droga (uma dose por dia durante sete dias) provocou uma estimulação cerebral global, muito maior do que no caso da água doce. Além de um maior número de estruturas ativadas pela administração repetida de cocaína, os pesquisadores também notaram diferenças na modularidade cerebral. E, quanto mais módulos cerebrais coativados, maior será a plasticidade sináptica e, portanto, mais eficiente será a transferência e análise da informação.
O que podemos depreender desse experimento? Primeiro, que após uma única administração da recompensa, tanto o açúcar quanto a cocaína aumentaram a modularidade do cérebro. Porém, com a administração repetida, apenas a cocaína manteve tal modularidade das estruturas neurais. Outro ponto, quanto às estruturas cerebrais ativadas pelo açúcar e pela cocaína, elas se sobrepunham de maneira geral, mas os pesquisadores também localizaram algumas delas mais específicas para determinada recompensa. Uma análise mais detalhada do núcleo accumbens confirmou subáreas distintamente ativadas em cada caso.
Considerações finais
Sim, o açúcar vicia. Apesar dessa constatação e dos esforços científicos mais atuais, não se tem claro o mecanismo pelo qual o açúcar gera dependência, em alguns cenários de laboratório, até mais intensamente do que drogas extremamente viciantes como a cocaína. Talvez as recompensas naturais, mesmo em doses exageradas, estejam associadas a uma maior capacidade cerebral de autoequilíbrio, obviamente até um limite neurofisiológico.
Isso não parece ocorrer com as drogas de abuso reconhecidamente deletérias para o cérebro, como a cocaína, capazes de aumentar artificialmente a disponibilidade de dopamina devido às suas propriedades farmacológicas. Quer seja a primeira ou várias exposições à droga, ela continua capaz de induzir mudanças no cérebro ao longo do tempo, modificações que facilitarão a formação da chamada “memória da droga”.
Apesar das limitações dos estudos mencionados e da posição crítica de alguns cientistas em relação à vilanização do açúcar, pode ser preferível classificá-lo como “droga de abuso” tendo em vista todas as consequências que seu consumo exagerado pode trazer para o cérebro e saúde do organismo como um todo. O fato de ser socialmente aceita, e desempenhar um papel de “social binding” (cola social) em várias situações de convivência humana, essa visão que pode parecer um tanto alarmista num primeiro momento talvez seja capaz de salvar muitos cérebros no futuro.
Referências e Leitura Complementar:
- Lenoir, M., Serre, F., Cantin, L., & Ahmed, S. H. (2007). Intense sweetness surpasses cocaine reward. PloS one, 2(8), e698. ➞ Ler Artigo
- Gillespie, K. M., White, M. J., Kemps, E., Moore, H., Dymond, A., & Bartlett, S. E. (2023). The Impact of Free and Added Sugars on Cognitive Function: A Systematic Review and Meta-Analysis. Nutrients, 16(1), 75. ➞ Ler Artigo
- Bijoch, Ł., Klos, J., Pawłowska, M., Wiśniewska, J., Legutko, D., Szachowicz, U., … & Beroun, A. (2023). Whole-brain tracking of cocaine and sugar rewards processing. Translational Psychiatry, 13(1), 20. ➞ Ler Artigo