A depressão sempre foi um transtorno encarado como exclusivamente de ordem mental, subjetiva. Apenas nas últimas décadas a ciência tem levantado hipóteses e evidências de correlações diretas entre os sintomas depressivos e alterações cerebrais. A população, de maneira geral, tem compreendido essa mudança de perspectiva, importante para que os transtornos de humor possam ser tratados e conduzidos com mais correção.
No entanto, o que ainda parece novo para muitos de nós é a correlação cada vez mais estreita entre fenômenos neuropsiquiátricos, cerebrais, e o que ocorre em outros meandros do nosso organismo, ou em todo ele. Um exemplo é o link mais recentemente explorado entre os processos que regulam a temperatura corporal, observados à partir da pele, e os processos que regulam o nosso humor.
Cenário atual e a necessidade de novos tratamentos para a depressão
A depressão tornou-se uma crise sanitária de proporções epidêmicas, com um aumento particularmente significativo entre jovens e adultos jovens. Isso é particularmente preocupante, uma vez que o curso da doença tem maior probabilidade de ser maligno e os custos da depressão em termos de oportunidades perdidas ao longo da vida são provavelmente mais elevados nessa fase da vida.
Por outro lado, a prescrição e o uso de antidepressivos aumentaram substancialmente na maioria dos países ocidentais durante o mesmo período, e os agentes farmacológicos atualmente disponíveis têm limitações significativas na eficácia.
Todo esse cenário destaca a necessidade urgente de identificar e implementar novos tratamentos para a depressão. Mas, para isso, é importante identificar mecanismos que contribuam para o desenvolvimento e/ou manutenção de sintomas depressivos e que possam ser passíveis de intervenção.
Embora a depressão seja comportamentalmente heterogênea, um primeiro passo importante no desenvolvimento do tratamento é frequentemente identificar assinaturas fisiológicas nos indivíduos com o chamado transtorno depressivo maior (TDM) que não estejam presentes entre aqueles sem o TDM.
Embora nenhuma anormalidade biológica ou comportamental caracterize todos os indivíduos com TDM, a identificação de uma anormalidade associada ao TDM pode abrir a porta para a identificação de um subgrupo relativamente biologicamente homogêneo que demonstra uma maior resposta ao tratamento a intervenções que visam a anormalidade específica.
“Arritmia” circadiana, desregulação termorregulatória na depressão
Uma característica fisiológica que pode ter potencial como alvo terapêutico é a chamada desregulação termorregulatória, que está entre as anormalidades biológicas circadianas mais amplamente relatadas em transtornos afetivos, incluindo o TDM. Isso tem sido observado na forma de temperatura corporal elevada, principalmente à noite, quando as respostas de resfriamento termorregulador são críticas para o início e a qualidade do sono. Tais elevações de temperatura também foram relatadas durante o dia.
Alguns dados têm sugerido que essas elevações aberrantes de temperatura corporal melhorem paralelamente à recuperação clínica no TDM. Os dados revelaram que a amplitude circadiana é atenuada na depressão e que diferenças menores entre a temperatura corporal média durante o período de vigília (normalmente durante o dia) e durante o período de sono (normalmente durante a noite) estão associadas a maiores sintomas depressivos. Além disso, indivíduos com depressão apresentam amplitudes de temperatura corporal circadiana mais baixas e que aumentam para patamares fisiológicos com a recuperação clínica. Tudo isso é notável tendo em vista a estreita faixa de variação da temperatura corporal humana.
Segundo os neurocientistas, todas essas correlações, embora sugestivas, derivam de estudos de pequena escala realizados com amostras limitadas (< 300) e em ambientes controlados. Assim, um passo importante para a compreensão da associação entre a desregulação termorregulatória e os sintomas depressivos foi estabelecer essa associação fora dos laboratórios clínicos e em amostras maiores, como você verá em seguida.
O novo estudo publicado na Scientific Reports
Mason e colaboradores (2024) investigaram associações entre pontuações mensais de sintomas de depressão e (1) temperatura corporal auto-coletada utilizando termômetros e submetida à equipe de pesquisa por meio de pesquisas on-line e (2) temperatura corporal distal coletada por dispositivo wearable e transmitida automaticamente à equipe de pesquisa via Internet, numa grande amostra internacional que contemplou mais de 20 mil adultos.
Este é até o momento o maior estudo a examinar a associação entre a temperatura corporal, avaliada usando métodos de autorrelato e sensores vestíveis, e sintomas depressivos em uma amostra geograficamente ampla. Observou-se uma correlação entre o aumento da gravidade dos sintomas de depressão e temperaturas corporais mais elevadas em participantes de 106 países.
O estudo, publicado em 5 de fevereiro na Scientific Reports, não indica se a depressão aumenta a temperatura corporal ou se uma temperatura mais alta causa depressão. Também não se sabe se a temperatura corporal mais elevada observada em pessoas com depressão reflete uma diminuição da capacidade de auto-resfriamento, um aumento da geração de calor a partir de processos metabólicos, ou uma combinação de ambos.
A temperatura corporal reflete um equilíbrio entre a geração de calor metabólico e a perda de calor termorreguladora, com esses processos sob rígido controle por um sistema integrado de feedback neural e imunológico que envolve processos corporais e do sistema nervoso central. A capacidade inadequada de ativar mecanismos termorreguladores de resfriamento, atrelada à redução da capacidade de suar, pode desempenhar um papel importante nas alterações da temperatura corporal observadas na depressão. De fato, o nível mais baixo de condutância da pele em indivíduos com depressão versus controles saudáveis tem sido um achado consistente.
Pessoas depressivas suam menos?
As evidências sugerem que indivíduos com TDM podem ter atividade eletrodérmica alterada (EDA), que agora é o termo preferido que abrange uma gama de termos históricos relacionados às características elétricas da pele, como nível eletrodérmico, resposta eletrodérmica, resposta galvânica da pele, reflexo psicogalvânico, condutância da pele, nível de condutância da pele, resposta de condutância da pele e resposta simpática da pele. A EDA é tipicamente avaliada como alterações na quantidade de suor secretado pelas glândulas sudoríparas écrinas na hipoderme das regiões palmar e plantar.
A sudorese foi associada pela primeira vez à depressão em 1890, uma observação que tem se repetido na depressão desde então, mas que parece estar resignada temporariamente ao campo laboratorial. Em linhas gerais, a hipoatividade eletrodérmica parece ser uma característica confiável da depressão e até um marcador válido de risco suicida.
Correlações entre métricas de temperatura corporal e sintomas depressivos sugerem potenciais mecanismos fisiopatológicos subjacentes comuns. Por exemplo, o estresse crônico que contribui para o risco de depressão também pode impactar a termorregulação do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal. Além disso, foi observada uma sinalização anormal de glutamato/GABA em cérebros post-mortem com TDM, e esse desequilíbrio excitatório/inibitório também poderia contribuir para a desregulação da temperatura corporal. Finalmente, já foi visto que a inflamação corporal de baixo grau pode levar tanto à elevação da temperatura corporal quanto aos sintomas depressivos.
Um novo tratamento antidepressivo em vista?
As associações entre temperatura corporal e depressão poderiam ser relegadas ao domínio do interesse acadêmico, não fosse pelos dados que mostram que as intervenções direcionadas diretamente aos sistemas termorreguladores foram capazes de produzir efeitos antidepressivos.
Embora possa parecer contra-intuitivo que intervenções que aumentem temporariamente a temperatura corporal possam beneficiar uma condição caracterizada pelo aumento da temperatura corporal, a exposição aguda ao calor elevado induz processos de resfriamento termorreguladores contrarregulatórios que produzem reduções sustentadas e de longo prazo na temperatura corporal.
No contexto do TDM, foi relatado que a hipertermia de corpo inteiro provoca uma redução rápida e sustentada nos sintomas depressivos após um único tratamento de hipertermia de corpo inteiro projetado para aumentar a temperatura corporal central para 38,5 °C. Em um desses ensaios, os participantes com depressão e temperaturas corporais mais elevadas antes da HBH tenderam a apresentar respostas antidepressivas maiores. Efeitos antidepressivos também foram observados em outras intervenções baseadas no calor, incluindo ioga quente, banhos hipertérmicos e lâmpadas infravermelhas de sauna.
Conclusão
Todos os dados confirmaram uma associação entre temperatura corporal e sintomas depressivos, mostrando que indivíduos com depressão têm menores diferenças (amplitude) de temperatura corporal durante o sono e a vigília.
Embora a depressão seja biológica, comportamental e psicologicamente heterogênea, as descobertas sugerem que a temperatura corporal é um candidato a marcador biológico de depressão para alguns indivíduos com sintomas depressivos, inclusive como forma de acompanhar a evolução dos sintomas e a resposta aos tratamentos.
Cada vez mais temos a certeza de que a depressão é um transtorno não só da mente de forma isolada, mas do cérebro em uma visão monista e de todo o organismo, numa visão definitivamente holística.
Referências e Leitura Complementar:
- Mason, A. E., Kasl, P., Soltani, S., Green, A., Hartogensis, W., Dilchert, S., … & Smarr, B. L. (2024). Elevated body temperature is associated with depressive symptoms: results from the TemPredict Study. Scientific Reports, 14(1), 1884. ➞ Ler Artigo
- Sarchiapone, M., Gramaglia, C., Iosue, M., Carli, V., Mandelli, L., Serretti, A., … & Zeppegno, P. (2018). The association between electrodermal activity (EDA), depression and suicidal behaviour: A systematic review and narrative synthesis. BMC Psychiatry, 18, 1-27. ➞ Ler Artigo
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