A dopamina é o neurotransmissor catecolaminérgico mais abundante no cérebro humano, onde desempenha várias funções. Está envolvida em vias de incentivo-motivação, bem como na resposta a estímulos aversivos.
Neste artigo, será enfatizada a função da dopamina na sinalização das recompensas em relação à sua previsibilidade. Para isso, precisaremos conhecer um pouco mais a fundo o Sistema de Recompensa Cerebral.
Status de neurotransmissor
A dopamina foi descrita como molécula neurotransmissora no Sistema Nervoso Central há mais de meio século. Em 1957, o Dr. Arvid Carlsson mostrou que a dopamina era não apenas uma precursora da noradrenalina, mas participava de fato da comunicação entre os neurônios.
Além disso, o farmacologista sueco e ganhador do prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia em 2000 desenvolveu um ensaio para medir a dopamina cerebral, tendo identificado sua maior concentração nos núcleos da base.
Desde sua designação como neurotransmissor, a dopamina tem sido relacionada a processos fisiológicos e patológicos no Sistema Nervoso Central e na periferia. Atualmente, há um particular interesse em entender suas implicações na performance humana, em especial na tomada de decisão.
Definição e produção
A dopamina é uma amina biogênica do grupo das catecolaminas, produzida a partir da metabolização do aminoácido tirosina, uma molécula não essencial que pode ser obtida através da alimentação, ou sintetizada em pequenas quantidades no fígado.
Como curiosidade farmacológica, a dopamina é precursora de outro importante neurotransmissor, a noradrenalina.
Regiões produtoras
No organismo, os locais onde ocorre a síntese de dopamina são as glândulas suprarrenais e o encéfalo. No que diz respeito ao Sistema Nervoso Central, ela é produzida principalmente na Substância Negra pars compacta e na Área Tegmental Ventral, regiões localizadas na porção superior do tronco encefálico, no mesencéfalo.
Neurônios dopaminérgicos posicionados nessas áreas mesencefálicas se projetam difusamente para diversas outras localidades do cérebro, através das vias nigroestriatal, mesolímbica e mesocortical. Temos ainda uma quarta via dopaminérgica de importância documentada, a tuberoinfundibular, cuja origem é o hipotálamo.
Algumas curiosidades sobre a neurotransmissão dopaminérgica:
- Embora os neurônios dopaminérgicos representem menos de 1% da população neuronal total do cérebro, eles influenciam profundamente a função cerebral
- Cerca de 80% do total da dopamina presente no Sistema Nervoso Central é encontrado no estriado, enquanto que o restante encontra-se distribuído difusamente pelo córtex e outras regiões cerebrais
- Cada neurônio dopaminérgico mesencefálico possui um comprimento axonal total, incluindo os ramos colaterais, de aproximadamente 74 cm
- Cada um desses neurônios participa de uma imensa rede de conexões sinápticas, com cerca de 500 mil terminais axônicos para cada célula nervosa
Função da dopamina
A dopamina é um neurotransmissor modulador crítico, com ação excitatória ou inibitória de acordo com qual dos 5 subtipos de seus receptores é ativado (D1, D2, D3, D4 e D5).
Atuando em vias distintas, está envolvida em uma ampla gama de funções, incluindo o controle do movimento, motivação, processamento de recompensas, aprendizagem, memória e lactação.
Entre tantas funções primordiais, a dopamina é considerada a molécula do Sistema de Recompensa Cerebral. Vale ressaltar: apesar do seu papel inequívoco no processamento das recompensas, outras moléculas também interagem com ela nesse sistema.
Recompensas neurobiológicas
Como você define uma recompensa do ponto de vista cerebral?
A neurociência define a recompensa como qualquer resultado positivo ou prazeroso que estejamos motivados a obter e pelos quais trabalharemos. O conceito é amplamente aceito pela comunidade científica, mas ainda pode ser melhor esmiuçado.
Recompensas primárias incluem comida, bebida e sexo. São valiosamente inatas devido às suas propriedades intrínsecas relacionadas com a sobrevivência. Em contrapartida, recompensas secundárias têm valor por conta de sua associação com resultados prazerosos, como é o caso do dinheiro.
Importante saber que o cérebro converte e resume todas as recompensas em uma única escala de valor, o que facilita a tomada de decisão quando lidamos diariamente com uma pletora de ações podendo resultar em diferentes tipos de recompensas.
Dopamina e previsão de recompensas
Há pouco mais de 20 anos tem sido postulado que o mecanismo pelo qual os níveis de dopamina refletem uma recompensa é mais intrincado do que parece. O neurotransmissor deixou de ser ligado diretamente ao prazer, passando a ser mais relacionado com motivação, desejo (wanting) e busca (searching). Os especialistas entenderam que o conceito chave no estudo da dopamina passou a ser a previsibilidade comportamental em relação a estímulos valiosos.
No Sistema de Recompensa Cerebral, uma maior liberação de dopamina acontece principalmente quando as recompensas primárias não são previstas, ou seja, quando somos surpreendidos por um estímulo recompensador. Dito de outro modo, a dopamina vai preparar o terreno para que você memorize as pistas que o levaram e o levarão futuramente ao mesmo estímulo recompensador. Em contrapartida, a resposta dopaminérgica é negativa quando as recompensas esperadas não ocorrem, nos decepcionando em relação às expectativas iniciais, e nula quando elas se dão exatamente conforme o previsto.
Como os neurônios dopaminérgicos relatam as recompensas primárias de acordo com a diferença entre a ocorrência e a previsão de recompensa, alguns neurocientistas pontuam que a dopamina está envolvida com o chamado ‘erro de previsão de recompensa‘. Descobertas subsequentes confirmaram que a transmissão dopaminérgica neste sistema não responde apenas às recompensas, mas também às pistas que indicam de forma confiável que uma recompensa chegará ou não. Em resumo, a dopamina conecta as expectativas com a experiência real, ela aumenta ou diminui com a precisão de nossas projeções mentais. Enquanto que um erro de previsão positivo seria representado em nosso cérebro por uma agradável surpresa, um erro de previsão negativo seria uma decepção.
É preciso entender que a dopamina não está completamente desvinculada do prazer. No entanto, sua ação no circuito motivacional do cérebro só está associada a um tipo de experiência positiva: a alegria do desejo.
Como vimos, os picos de dopamina ocorrem quando antecipamos coisas boas, mas não necessariamente quando as recebemos. O efeito dopaminérgico é excitante, estimulante e motivador – não relaxante, aterrador ou calmante. Os prazeres da satisfação, na verdade, estão mais ligados aos opioides do cérebro, ou substâncias químicas semelhantes à heroína, os endocanabinoides. Uma prova sutil desse equívoco em relação ao papel da dopamina no nosso cérebro todos já experimentamos em algum momento: o desejo insatisfeito está longe de ser prazeroso.
O funcionamento alterado desse sistema pode resultar em uma condição curiosa: a “esteira hedônica”. A menos que as recompensas sejam cada vez maiores e mais emocionantes, mesmo as melhores experiências empalidecem com o tempo quando caem na rotina. É como se precisássemos sempre de uma dose sináptica um pouco maior de dopamina para nos motivar, ou ‘encontrar algo novo’. Mas isso não é de todo ruim: se essa habituação não acontecesse, nossos cérebros não poderiam permanecer sensíveis à novidade, o que acaba sendo essencial para o aprendizado e, portanto, para a sobrevivência.
Via dopaminérgica mesocorticolímbica – A via cerebral da recompensa
Qual de fato é o substrato neural do sistema de recompensa cerebral?
Para começo de conversa, hoje se sabe que a Substância Negra pars compacta (SNc), envolvida primordialmente no controle da função motora através da via nigroestriatal, também participa de comportamentos direcionados a objetivos, incluindo cognição e aprendizagem. Evidências dão conta de que a via nigroestriatal facilita a seleção da ação mais recompensadora.
No entanto, os neurônios produtores de dopamina que irão abastecer a via da recompensa propriamente dita estão localizados na Área Tegmental Ventral (ATV).
A ATV é o ponto de partida das vias dopaminérgicas mesocortical e mesolímbica. Projeções para o Núcleo Accumbens, Hipocampo, Amígdala e tubérculo olfatório estão envolvidas em processos de emoção, memória e recompensa, formando a via mesolímbica. Fibras dopaminérgicas, via feixe prosencefálico medial, se projetam da área tegmentar ventral (VTA) do mesencéfalo para o núcleo accumbens
O Núcleo Accumbens compõe a área mais ventral do corpo estriado, sendo reconhecido como o principal centro de comportamento relacionado à recompensa, incluindo aprendizagem e processos motivacionais.
Um segundo alvo das projeções dopaminérgicas provenientes da ATV é o córtex frontal (especificamente os córtices pré-frontal e orbitofrontal). Esse subsistema mesocortical estaria relacionado com a aprendizagem e memorização, ou seja, uma espécie de gerenciamento cognitivo das recompensas.
Correlatos clínicos principais
Distúrbios envolvendo a produção de dopamina e sua ação na membrana neuronal têm sido associados a diversas condições neurodegenerativas e transtornos neuropsiquiátricos. Confira a seguir como a disfunção do Sistema de Recompensa Cerebral pode ser relacionada a alguns deles.
Doença de Parkinson: distúrbio degenerativo do Sistema Nervoso Central envolvendo os neurônios dopaminérgicos dos núcleos da base, em particular a pars compacta da substância negra. A doença de Parkinson é caracterizada por sintomas motores como tremor, bradicinesia, instabilidade postural e rigidez, mas também podem ocorrer prejuízos funcionais envolvendo a memória, a linguagem, a percepção sensorial, o sono e a vigília. Tanto o parkinsonismo primário como seu tratamento com agonistas dopaminérgicos já foram associados ao processamento cerebral prejudicado de riscos e recompensas, levando ao jogo patológico, hipersexualidade e uso indevido de medicamentos.
Transtorno de personalidade borderline: sintomas do transtorno de personalidade borderline têm sido associados à disfunção do sistema dopaminérgico, que está envolvido no processamento cognitivo, emocional e na regulação de comportamentos impulsivos. Mudanças repentinas e transitórias do estado de ânimo (disforia) podem estar de algum modo relacionadas ao desequilíbrio dopaminérgico nos circuitos cerebrais de recompensa.
Abuso e dependência de substâncias: os efeitos recompensadores das substâncias de abuso derivam em grande parte dos aumentos consideráveis na quantidade de dopamina extracelular nas regiões límbicas e, em particular, no Núcleo Accumbens, durante o uso da droga. A atividade dos neurônios dopaminérgicos que acompanha o uso dessas substâncias codifica uma série de propriedades de recompensa, incluindo expectativa de recompensa, aprendizado de recompensa e consolidação de memórias contextuais. Todos esses processos contribuem para a intensa motivação para obter as drogas de abuso. Foi proposto que o mecanismo crucial para o desenvolvimento da dependência é a ativação dopaminérgica na via mesolímbica, também referida como ‘hipótese dopaminérgica da dependência’.
Esquizofrenia: transtorno complexo e debilitante que surge tipicamente no final da adolescência e início da fase adulta, caracterizado por alucinações e delírios (sintomas positivos), retraimento social, alogia e afeto plano (sintomas negativos) e deficiências cognitivas. A prevalência estimada ao longo da vida é de 1%. A anedonia tem sido hipotetizada como uma característica central da esquizofrenia. Segundo os cientistas, os déficits motivacionais associados à esquizofrenia também seriam oriundos de problemas dopaminérgicos centrais.
Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH): o TDAH afeta aproximadamente 8 a 9% das crianças em idade escolar e 4 a 5% dos adultos. É caracterizado por sintomas de desatenção, hiperatividade ou impulsividade que trazem prejuízos nos domínios cognitivo, comportamental e interpessoal. Interrompe o desenvolvimento acadêmico e social e está associado a uma considerável comorbidade psiquiátrica, incluindo funcionamento acadêmico, ocupacional e social prejudicados, aumento das taxas de abuso de substâncias e acidentes de trânsito e deficiências neuropsicológicas persistentes. O processamento desregulado de recompensa foi proposto como um mecanismo central nos modelos teóricos predominantes de TDAH. A Teoria do Déficit de Transferência de Dopamina do TDAH sugere, entre outras coisas, respostas dopaminérgicas alteradas a pistas que predizem recompensas.
Transtorno obsessivo-compulsivo (TOC): pesquisas com camundongos já traçaram um paralelo entre a transmissão mesolímbica alterada de dopamina e o TOC. Cobaias geneticamente modificadas para apresentarem deficiência na recaptação de dopamina sináptica mostraram um aumento do tônus dopaminérgico, atividade hipermotora e aumento geral do movimento.
A literatura sobre doenças neurológicas e psiquiátricas relacionadas a disfunções do Sistema de Recompensa Cerebral é relativamente vasta. Além das condições acima, podemos citar inúmeras outras como Autismo (TEA), transtorno depressivo, transtorno bipolar, transtorno desafiador opositivo, bulimia nervosa e a síndrome de Tourette. Daí a importância de conhecer os mecanismos cerebrais de recompensa.
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