Não é de hoje que a Medicina vem descobrindo que o corpo é bem mais que um aglomerado de órgãos. A ciência tem caminhado para uma visão mais holística, em que cada órgão, por mais “simples” que possa parecer, interfere em todos os outros e pode levar ao adoecimento do indivíduo como um todo (física e psicologicamente também).
Dizemos que “os olhos são a janela da alma”, mas talvez o órgão mais certo para essa expressão fosse a pele. Além de ser o mais visível (e, inclusive, o maior órgão do corpo humano), a superfície cutânea apresenta todo tipo de alterações que se possa imaginar e muitas delas sinalizam o que acontece em vários outros locais do organismo. Logo, sua relação com o cérebro não teria por que ser diferente.
Todos já percebemos alterações na própria aparência mediante alterações de humor ou situações de estresse. Alguns percebem surgimentos de espinhas, outros têm crises de atopia, queda de cabelo ou simplesmente alterações mais globais que nos fazem parecer mais velhos.
Foi observando essa relação que muitos estudiosos do assunto desenvolveram interesse em descobrir se a pele e o sistema nervoso têm algum tipo de comunicação entre si. E eles descobriram que sim.
Mecanismos em comum
A pele é um dos principais meios de comunicação entre o corpo e o meio externo. Ela encara vários tipos de agressões como lesões ou agentes infecciosos e permite a percepção do meio através de estímulos táteis. Para isso, a pele é extensamente inervada e possui tanto neurônios aferentes (que transmitem informações da pele para o sistema nervoso central – SNC) quanto eferentes (que trazem informações do SNC para a pele).
Quando a pele é lesionada, por exemplo, os nociceptores (receptores neurais responsáveis por receber e transmitir estímulos dolorosos) ativam os circuitos que terminam no cérebro e geram a sensação de dor. Outros receptores presentes nesse órgão transmitem sinais quanto a temperatura, pH e outros vários estímulos potencialmente lesivos. Logo em seguida, em frações de segundo, o cérebro manda informações de volta que resultam na liberação de substâncias no local que estimulam o processo inflamatório (responsável pelo combate a microorganismos e pelo processo de cicatrização, posteriormente).
Porém, além dessas vias de comunicação entre pele e cérebro, que já são bem conhecidas, pesquisas mais recentes têm mostrado outro mecanismo em comum entre esses órgãos: as vias hormonais.
A reação fisiológica do organismo ao estresse é mediada por etapas neurológicas e endócrinas com sistemas hormonais específicos. Os dois mais conhecidos são o eixo hipotálamo-hipófise-adrenal (HPA, sigla em inglês) e o eixo simpático-medular-adrenal (SAM, sigla em inglês). Os dois são responsáveis por alterações sistêmicas para favorecer as respostas de fuga-ou-luta que a maioria dos animais têm perante situações de perigo como aumentar a pressão arterial, acelerar frequência cardíaca, sudorese e adequar a fisiologia respiratória, por exemplo.
O que as pesquisas têm mostrado, mais recentemente, é que a pele tem seu próprio análogo do eixo HPA e é igualmente sensível ao eixo SAM. Além de expressar receptores para hormônios como CRH, ACTH, cortisol e catecolaminas (elementos dos eixos anteriormente citados), a pele é capaz de produzir esses mesmos mediadores quando submetida a situações de estresse. Nela, essa cascata hormonal tem o efeito de estimular processos inflamatórios e, depois, convertê-los em processo cicatricial para cura do tecido uma vez que os agentes agressores tenham sido eliminados.
E é aí que entra a interação cérebro-pele. Se o tegumento possui receptores para os mediadores dos eixos HPA e SAM, isso quer dizer que ele também está sujeito a influências da resposta sistêmica ao estresse de todo tipo.
O cérebro atuando sobre a pele
Há muito tempo, a ciência tem comprovado que o estresse psicológico pode agravar várias condições de pele, entre elas a psoríase, a dermatite atópica, acne, alopecia areata e eritemas de várias etiologias.
Mais que isso, porém, a interação SNC-pele pode estar relacionadas a alterações mais sutis, mesmo que não menos importantes.
O estrato córneo (a camada mais externa da pele) tem importante função de barreira, impedindo a entrada de agentes patogênicos e a perda excessiva de água. A camada de lipídeos que recobre naturalmente o tegumento exerce esta mesma função.
Tanto em pesquisas com humanos quanto com camundongos, os resultados deixam evidente que o estresse compromete a função de barreira da pele. Nesses experimentos, tanto a integridade da camada córnea quanto a composição da barreira lipídica estão claramente comprometidas, levando à desidratação e formação de rugas. E esse efeito ocorre nos tipos mais variados de estresse: isolamento, insônia, estresse pré-prova, estresse após término de uma relação etc.
Em muitos desses casos, os danos sobre a pele podiam ser revertidos ou prevenidos administrando-se antagonistas dos receptores de CRH e de corticóides ou, em outras palavras, bloqueando-se a influência do eixo HPA. Isso sugere os eixos neuro-hormonais do estresse como prováveis elos na interação SNC-pele.
Um desses testes, especificamente o que envolveu indivíduos passando pelo estresse da separação conjugal, mostrou que a capacidade da pele em regenerar o estrato córneo (após retirada experimental da camada) estava gravemente comprometida nos participantes. O que nos leva a outra questão importante.
Para exercer sua função de barreira, o tegumento é equipado com mecanismos moleculares e celulares de regeneração e cicatrização que são essenciais. Enquanto a inflamação local é essencial para esses processos durante o estresse agudo, o estresse crônico com sua ativação crônica dos eixos HPA e SAM mostrou-se altamente deletério à pele e sua capacidade de reparo.
Essa relação já é bem conhecida na ciência e as pesquisas mostram que situações de estresse crônico (depressão, ansiedade e doenças crônicas, por exemplo) relacionam-se consistentemente com dificuldades de cicatrização. Alguns estudos com cuidadores de pacientes com demência mostraram que os próprios cuidadores levavam 20% mais tempo para reparar lesões dérmicas que os grupos de controle.
O que respalda a ação dos eixos hormonais do estresse nesse cenário é que os mediadores inflamatórios induzidos por eles na pele são os mesmos que se observa nas situações de má cicatrização. Além disso, mais uma vez, o retardo no processo de reparo foi eficientemente revertido pela administração de antagonistas dos receptores de corticóides.
O eixo SAM também parece importante porque, em situações de estresse, as catecolaminas agem com vasoconstrição da pele (ou seja, estreitamento dos vasos sanguíneos de menor calibre), a fim de deslocar o sangue para órgãos como coração e músculos. Nisso, o fluxo sanguíneo reduzido cronicamente comprometeria o fornecimento adequado de nutrientes e oxigênio para a pele, comprometendo mais a inda o processo de regeneração e cicatrização.
Todos esses elementos, em união, ameaçam a função de barreira da pele e podem até mesmo favorecer infecções bacterianas. Isso mostra uma possível utilidade desse conhecimento na prática clínica, em que o controle do estresse seria importante também em situações como pós-operatórios ou pacientes com imunossupressão. Um exemplo disso seria o efeito que algumas pesquisas mostraram usando psicoterapias: a capacidade curativa da pele foi significativamente melhor nos paciente submetidos a elas após biópsias de pele.
A pele atuando sobre o cérebro
Enquanto as influências do SNC sobre a pele são muitas, o contrário não deixa a desejar. Apesar de evidências um pouco mais escassas, a influência desta sobre aquele parece ser igualmente impactante.
A suspeita dessa relação surgiu quando se começou a observar a alta incidência de depressão e outros transtornos psiquiátricos e neurológicos em pacientes portadores de lesões por pressão ou LPP (antigamente chamadas úlceras de decúbito). O mesmo ocorre em outros tipos de lesões de pele crônicas.
Além do mecanismo mais óbvio unindo essas duas condições de saúde, a do estresse e do estigma associados à questão estética e sensitiva da ferida, muitos estudiosos questionam se não existem outros mecanismos por trás. Afinal, lesões crônicas, quase que de forma unânime, levam a processos inflamatórios sistêmicos crônicos, o que também tem sido observado em pacientes com depressão e demência.
Uma revisão bibliográfica publicada em 2020 revisou possíveis mecanismos para essa associação entre lesões crônicas de pele a distúrbios psiquiátricos e cognitivos. Uma analogia recorrente no artigo é entre o eixo cérebro-trato gastrointestinal e o chamado eixo cérebro-pele.
Já existem muitas pesquisas delineando a relação entre a microbiota intestinal e funções cerebrais, incluindo estados de humor. Tanto que camundongos livres de flora intestinal, quando recebem transplantes desses mesmos microorganismos, desenvolvem os mesmos traços de humor dos doadores. Como a pele também é um órgão que abriga muitos microorganismos próprios, a teoria é que distúrbios da microbiota da pele (também chamada disbiose da pele) poderiam ser responsáveis pelas alterações neurológicas que ocorrem com afecções cutâneas crônicas.
Ferimentos crônicos evoluem com a formação de um biofilme composto por patógenos de diferentes naturezas (bactérias, fungos, vírus etc) que, muitas vezes, comprometem a própria cicatrização. Tanto que se sugere ser possível tratar lesões cutâneas crônicas com probióticos tópicos, futuramente.
A disbiose, ao favorecer essa multiplicação de microorganismos patogênicos, leva a processos inflamatórios locais que podem resultar em “vazamento” de substâncias para a corrente sanguínea. Dentre elas, estariam citocinas inflamatórias (moléculas sinalizadoras que estimulam e organizam a inflamação) e antígenos dos patógenos.
Dentre as citocinas envolvidas, a interleucina 6 (IL-6) e o TNF-alfa estão presentes em grande quantidade no soro tanto em infecções e inflamações de diversas naturezas quanto em transtornos de humor (como o transtorno depressivo maior). Alguns estudos também mostraram que os altos níveis desses marcadores no sangue estão associados a declínio cognitivo mais rápido na terceira idade.
Mais que isso, essas e outras citocinas aumentam a permeabilidade da barreira hemato-encefálica, favorecendo efeitos seus e dos antígenos patogênicos sobre neurônios e outras células do SNC (favorecendo, por exemplo, sintomas depressivos). Observou-se que alguns desses mediadores inflamatórios comprometem a produção de BDNF e, consequentemente, a neurogênese e a plasticidade neural.
Os efeitos da microbiota natural do corpo sobre o cérebro ficam ainda mais claros em pesquisas com camundongos. Animais livres de germes desde o nascimento têm barreira hemato-encefálica muito permeável e a permeabilidade da mesma corrige-se depois que eles são colonizados com a flora normal da espécie. Logo, a disbiose, como comprometimento da composição normal da microbiota, comprometeria a permeabilidade da barreira pelo mesmo mecanismo.
Além de tudo isso, lesões cutâneas doem muito e já é sabido que a dor crônica favorece distúrbios de humor tanto pelo efeito psicológico quanto pela hiperativação neural dos nociceptores.
Conclusão
Os estudos sobre o eixo pele-cérebro são importantes porque esclarecem comunicações entre os dois órgãos até então desconhecidas. Considerar, por exemplo, que transtornos psiquiátricos e doenças neurológicas comprometem a cicatrização podem ajudar na formulação de tratamentos adicionais que melhorem desfechos pós-operatórios.
Além disso, descobrir como alterações de pele, em especial aquelas associadas à disbiose, podem influenciar até mesmo a capacidade cognitiva de um indivíduo pode servir de base para novos tratamentos para transtornos semelhantes.
Algumas situações podem se beneficiar das duas vias dessa relação. Grandes queimados, por exemplo, são um problema à parte pelas dificuldades de cicatrização, além do alto risco de infecção (afinal, essas lesões também formam biofilme e promovem a disbiose). Tratar simultaneamente a microbiota cutânea e manejar adequadamente o estresse desses pacientes poderia auxiliar na recuperação desses pacientes.
São todas teorias… Porém novas pesquisas podem descobrir mais e aprender a usar o eixo pele-cérebro a nosso favor.
Referências e Leitura Complementar:
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Interessantíssimo!!! Foi um boom no meu cérebro aqui! Muito bom artigo e já estarei pesquisando mais sobre o assunto, me interessei demais! Obrigada!