Somos constantemente bombardeados com recomendações para aumentar a nossa capacidade cognitiva e treinar o nosso cérebro para reter mais e mais informações. Acabamos não lidando bem com qualquer deslize mental. Seria uma perda de memória normal ou início de demência? Logo nos perguntamos…
Tradicionalmente, a memória é concebida como a capacidade de registrar, armazenar e recuperar informações, sendo fundamental para a sobrevivência e o desenvolvimento humano. Contudo, avanços recentes na neurociência têm reavaliado o papel do esquecimento, apresentando-o não como um defeito ou uma falha, mas como um componente essencial para a otimização da própria memória e, por extensão, da função cerebral.
Esquecimento: uma estratégia cerebral necessária
A vida humana é caracterizada pela incessante aquisição de informações, das quais apenas uma fração é relevante para a sobrevivência e bem-estar. Assim, a seleção do que deve ser retido ou descartado torna-se crucial. A importância do esquecimento é um entendimento relativamente novo para a neurociência. Até pouco tempo atrás, o esquecimento normal – em contraste com o esquecimento “patológico” que ocorre na doença e na senilidade – era visto como um processo passivo que não servia a nenhum propósito. O esquecimento, longe de ser uma falha, atua como um mecanismo de filtragem, priorizando informações importantes e descartando as irrelevantes. Esta seleção é fundamental não apenas para evitar a sobrecarga de informações mas também para a saúde mental, permitindo-nos superar experiências negativas e focar no presente e no futuro. Em outras palavras, o esquecimento pode ser a estratégia de primeira linha do cérebro no processamento da informação que chega até ele.
Esquecer é essencial dentro da neurofisiologia cerebral. Precisamos ter em mente que o objetivo biológico final do sistema de memória não é preservar a informação, mas sim ajudar o cérebro a tomar decisões mais acertadas, para que possamos viver e sobreviver. Contrariamente à crença de que uma memória “perfeita” é desejável, o esquecimento desempenha um papel vital na neurofisiologia cerebral. O objetivo biológico do sistema de memória não é a preservação exaustiva de informações, mas sim facilitar a tomada de decisões eficazes e adaptativas. Hoje sabemos que a capacidade de esquecer nos ajuda a priorizar, pensar melhor, tomar decisões mais acertadas e ser mais criativos.
O esquecimento normal, em equilíbrio com a memória, nos fornece a flexibilidade mental necessária para captar conceitos abstratos a partir de um universo de informações armazenadas, permitindo-nos uma visão mais total da realidade. A capacidade de esquecer contribui para uma maior flexibilidade mental, essencial para a compreensão de conceitos abstratos e para a criatividade, permitindo uma melhor navegação num mundo em constante mudança.
Formas fisiológicas de esquecimento
Existem diversas formas de esquecimento, maneiras de inibir a evocação e/ou de “escantear” memórias da consciência, mas também há muitas memórias que se perdem inexoravelmente e de forma irreversível com o tempo. A mais estudada é a extinção. Outra, popularizada por Freud, é a repressão, de certa forma vinculada à anterior. Existem memórias que não ultrapassam poucos segundos, e ficam sob custódia da memória de trabalho. Outras não ultrapassam a memória de curta duração, e não alcançam a memória de longa duração. Outras memórias duram poucos dias e depois desaparecem. Por último, há o que se pode chamar de esquecimento real: memórias que desaparecem por falta de uso. Este depende de um atrofiamento sináptico do próprio engrama neural (explicado mais à frente).
A compreensão de que os fenômenos de extinção e repressão não equivalem ao “esquecimento real” é importante. Tanto as memórias extinguidas como as reprimidas podem voltar à tona, quer espontaneamente quer como conseqüência de estímulos específicos. Elas efetivamente não se perdem, só têm sua evocação comprometida. Os mecanismos de extinção e repressão são ativos e envolvem a inibição de uma ou mais memórias por intervenção de regiões neurais específicas (córtex pré-frontal ventromedial, hipocampo, amígdala, córtex entorrinal em um caso; córtex pré-frontal ântero-lateral, hipocampo em outro).
Repare que todas as formas citadas acima ainda estão no campo fisiológico e podem (até devem) ocorrer em condições normais na vida do indivíduo.
Como o cérebro esquece
Recentes pesquisas neurocientíficas têm elucidado os mecanismos subjacentes ao esquecimento e sua importância para a aprendizagem e a memória. O conceito de plasticidade-estabilidade destaca como a plasticidade sináptica, essencial para a aprendizagem, pode levar ao esquecimento devido à remodelação sináptica. Este fenômeno reflete um equilíbrio dinâmico, onde o esquecimento surge como uma consequência natural do aprendizado, evidenciando a interdependência entre esquecimento e memória. Em outras palavras, não há aprendizado sem esquecimento.
Além disso, a identificação dos engramas neuronais, isto é, os neurônios que são preferencialmente envolvidos na codificação, consolidação, e recuperação de memórias específicas, oferece insights significativos sobre como as memórias são formadas e esquecidas. Estudos mostram que a expressão adaptativa e a interferência retroativa podem influenciar a persistência e a transiência das memórias, sugerindo que o esquecimento pode ser um processo ativo mediado por mudanças específicas no cérebro.
A plasticidade sináptica é necessária para uma aprendizagem bem-sucedida, mas tem o custo de informações potencialmente degradantes já armazenadas no circuito (o dilema plasticidade-estabilidade). Dada a remodelação sináptica suficiente de um conjunto neuronal específico do engrama, o esquecimento é inevitável. Em várias situações, são os mesmos neurônios cerebrais que participam da memorização das informações. Imprimir um novo aprendizado em um determinado grupo de neurônios irá inevitavelmente reescrever suas conexões, e isso acaba “apagando” o que estava previamente escrito nessa mesma rede neural.
O mundo muda, as memórias precisam se adaptar. Os engramas estão aí e se flexibilizam por isso.
Implicações clínicas do (não) esquecimento
A reavaliação do esquecimento, de um processo aparentemente passivo para um mecanismo ativo e necessário, está transformando a nossa compreensão da memória. Diversas evidências emergentes que desafiam a noção tradicional de memória e esquecimento sugerem até uma reconfiguração de como concebemos a cognição humana.
Reconhecer a importância do esquecimento abre novas perspectivas para a investigação científica e tem implicações significativas para a educação, saúde mental e tratamento de distúrbios neuropsicológicos. Uma área de interesse é o autismo.
Num estudo de 2016, quando uma proteína associada ao esquecimento foi inibida em moscas da fruta, aquelas que foram modificadas para conter genes ligados ao autismo demonstraram certa “inflexibilidade comportamental”, ou dificuldade em adotar novos padrões de comportamento. Segundo o pesquisador Tao Dong e seus colaboradores no estudo, a aversão ao excesso de estímulos demonstrada por algumas pessoas com transtorno do espectro do autismo pode ser o resultado de um cérebro incapaz de abandonar informações não essenciais.
À medida que exploramos mais profundamente a neurobiologia do esquecimento, podemos esperar descobertas que não apenas enriqueçam nosso entendimento da mente humana mas também melhorem a qualidade de vida, oferecendo estratégias para o manejo e a otimização da função mnemônica em diversos cenários. Outra área de interesse diz respeito às memórias intrusivas.
Há um apoio crescente à noção de que anomalias do controle cognitivo são um componente central de muitos dos déficits neuropsicológicos observados em indivíduos com doenças mentais. O controle cognitivo refere-se a um conjunto de processos mentais que modulam outros sistemas cognitivos e emocionais a serviço do comportamento adaptativo direcionado a objetivos. Dentre as funções executivas relacionadas ao controle cognitivo, a inibição de memórias indesejadas por meio do esquecimento ativo surge como um mecanismo crítico para a manutenção da saúde mental.
As memórias intrusivas são uma característica comum de muitas psicopatologias. Descobertas recentes sobre déficits no esquecimento ativo foram observadas em condições como o transtorno de estresse pós-traumático, depressão, esquizofrenia e transtorno obsessivo-compulsivo.
Por fim, cito a melancolia. Ela pode ser considerada uma condição em que o equilíbrio entre a lembrança e o esquecimento está alterado. Nos episódios depressivos melancólicos, a memória dos acontecimentos passados acaba se sobrepondo ao presente, impedindo a pessoa de se sincronizar com o ambiente, planejar o futuro e se mover. Esquecer os acontecimentos seria uma estratégia importante para a recuperação; no entanto, a maioria dos indivíduos patologicamente melancólicos não consegue se desligar emocionalmente do passado. Os transtornos de humor com características depressivas podem então estar ancorados na incapacidade de esquecer o passado, bem como paralelamente à inabilidade mental de formar novas memórias em substituição.
Antes das considerações finais, é preciso aceitar que talvez o esquecimento intrínseco seja o estado padrão do cérebro, promovendo constantemente o apagamento da memória, competindo com processos que promovem a sua estabilidade e consolidação. Acredita-se que muitos dos problemas que enfrentamos no nosso dia a dia se devam àquilo que esquecemos, ou que somos incapazes de recordar, o que não deixa de ser parcialmente verdade. No entanto, a incapacidade cerebral de esquecer o que precisa ser esquecido e reescrever uma nova história, mais condizente com a realidade diante de nós, é uma teoria bastante promissora para explicar muitos dos dilemas comportamentais da nossa geração.
Memória e esquecimento: considerações finais
Em primeiro lugar, o fato de o arquivamento definitivo da informação haver sido concluído, via consolidação celular, não determina que aquilo que foi retido na memória perdure ad eternum. Indica somente que o processo neuronal de registro de determinada informação foi realizado, ou seja, que as células nervosas finalizaram sua labuta. Desse modo, mesmo após o término da consolidação e, consequentemente, do registro da informação nos neurônios, é comum que o que foi aprendido pela pessoa se mantenha apenas por poucos dias, algumas semanas ou meses. A grande maioria das informações que armazenamos ao longo da vida é esquecida.
O cérebro está projetado para manter arquivadas as informações que mais se repetem, posto que provavelmente serão essas as mais imprescindíveis à sobrevivência. Como resultado, esquecemos aqueles saberes que não utilizamos ou com os quais não nos deparamos com certa frequência. Pode ocorrer, além disso, que um determinado dado esteja “escrito” no cérebro, mas tenha seu acesso dificultado pelo enfraquecimento e falta de uso daquelas ligações neuronais, tornando difícil sua recuperação.
Existimos e sobrevivemos porque vários processos, incluindo a memória, nos permitem registrar e armazenar saberes e atitudes. Nessa seleção, a preferência é pelo que é importante para nossa vida. Aquilo que não têm significado para nossa interação com o mundo tende a ser esquecido mais rapidamente ou nem chega a ser registrado como memória. Observando por outra ótica, é necessário esquecer, ou até não evocar determinadas memórias, notadamente se pensarmos naquelas que nos fazem sofrer, que nos perturbam, ou simplesmente representam um custo de energia cerebral além da conta necessária para adaptarmos o nosso comportamento.
Definitivamente, o próprio esquecimento é um fator necessário quando se fala em uma memória saudável. É sempre interessante termos em mente, também, que por mais óbvio nos pareça o conceito de memória como atributo do cérebro, ela pertence a um cenário para o qual fisiologicamente todo o corpo concorre. Isso quer dizer que a harmonia geral do organismo é de grande colaboração para que se tenha uma boa capacidade de memória.
Referências e Leitura Complementar:
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Esse artigo está ótimo!! Muito aprendizado aqui! =)
Oi Maria Fernanda! Obrigado pelo feedback! Muita pesquisa sobre um assunto tão interessante, mas pouco abordado.