A ciência sempre considerou até mais recentemente o sono humano um fenômeno global do cérebro, coordenado por redes neuronais especializadas e difusas que modulam toda a atividade cerebral. Mais especificamente, os neurocientistas atribuíam as alterações globais na excitabilidade cortical e a atividade reduzida nos sistemas de excitação/neuromodulação da formação reticular como os eventos determinantes da sincronização eletroencefalográfica que caracteriza o estado de sono. Mas isso parece cada vez mais discutível segundo as evidências dos últimos anos.
Como vimos, o sono já foi definido como um estado unitário e global em humanos e na maioria dos outros animais, coordenado por centros executivos no tronco encefálico, hipotálamo e prosencéfalo basal.
No entanto, a observação do sono unihemisférico em pássaros e mamíferos marinhos, bem como o sono regional fisiológico recentemente descoberto em roedores, aguçaram o questionamento se diferentes regiões do cérebro humano também poderiam exibir estados de sono-vigília simultaneamente diferentes.
Sono: um processo local e uso-dependente
Em um estudo italiano, Ferrara & De Gennaro revisaram um grande número de evidências, envolvendo principalmente estudos quantitativos com a técnica de eletroencefalografia (EEG). Segundo suas análises quantitativas do EEG do sono registradas a partir de múltiplas derivações corticais, ficou claro que todo o fenômeno do sono, do início ao despertar, é por natureza estritamente local e dependente do uso.
Lobos frontais do cérebro
O início do sono ocorreria primeiro em áreas frontais. Há uma predominância frontal de energia de baixa frequência na primeira parte da noite, principalmente quando ocorrem os processos homeostáticos. Ao acordar, mostramos uma ativação eletroencefalográfica assíncrona de diferentes áreas corticais, sendo as mais anteriores as primeiras a despertar.
Durante longos períodos de vigília, o aumento das baixas frequências do EEG relacionadas à sonolência é também mais evidente nas derivações frontais.
Da mesma forma, manipulações experimentais da duração do sono por privação total, redução parcial ou mesmo privação seletiva do sono de ondas lentas levaram a um rebote da atividade de ondas lentas localizado especialmente nas derivações anteriores.
É de se supor portanto que as áreas frontais estão envolvidas de forma crucial na homeostase do sono. De acordo com a teoria dependente de uso local, isso derivaria de uma maior necessidade de sono por parte do córtex frontal, que por sua vez se deve a seus níveis mais elevados de atividade durante a vigília.
O fato é que diferentes regiões cerebrais podem exibir simultaneamente diferentes intensidades de sono, um indicativo de que ele não é um estado espacialmente global e uniforme. Para além disso, há dados suficientes para acreditar que o sono não esteja necessariamente presente em todo o cérebro de forma simultânea. Sono e vigília podem coexistir em diferentes localidades do cérebro.
Sono cortical vs sono subcortical
Uma outra análise sobre os estágios do sono em relação às áreas cerebrais levou em consideração as regiões corticais em comparação às subcorticais. O estudo multicêntrico também foi realizado por universidades na Itália, e publicado no periódico NeuroImage.
A partir de eletrodos independentes posicionados profundamente no hipocampo e eletrodos corticais superficiais no couro cabeludo de oito seres humanos com epilepsia intratável farmacologicamente, descobriu-se que o neocórtex e o hipocampo podem estar em estados de consciência não simultâneos, em média, um terço da noite. A duração dos períodos com evidente assincronia variou de 30 segundos a mais de 30 minutos. Esses resultados questionam as conclusões de estudos, em toda a filogenia, que medem apenas o estado cortical superficial, mas buscam avaliar as funções e os condutores dos estados de sono em todo o cérebro.
A coexistência de padrões de atividade cerebral dissociados regionalmente – com algumas áreas do cérebro sendo ativas enquanto outras já mostram sinais de sono – pode ocorrer em todos os estados de vigília, incluindo a transição da vigília para o sono e pode ser responsável por eventos fisiológicos e patológicos. Esses estados eletrofisiológicos dissociados são frequentemente caracterizados por comprometimento cognitivo e comportamental de vários domínios, como amnésia para eventos imediatamente anteriores ao sono.
Ao realizar registros eletroencefalográficos intracerebrais simultâneos do hipocampo, bem como de locais neocorticais distribuídos em pacientes neurocirúrgicos, observou-se que os fusos do sono ocorreram consistentemente no hipocampo vários minutos antes do início do sono. Além disso, as detecções do fuso hipocampal precederam consistentemente os eventos neocorticais, com atrasos crescentes ao longo do eixo ântero-posterior cortical.
Essas são mais evidências que se somam para suportar a noção de que a vigília e o sono não são estados mutuamente exclusivos, mas sim parte de um continuum resultante da complexa interação entre sistemas neuromoduladores difusos e propriedades intrínsecas dos diferentes módulos tálamo-corticais.
O cansaço leva partes do cérebro a dormir na vigília
Por fim, um estudo bastante interessante publicado na revista Nature sugeriu que o cansaço pode fazer partes do cérebro “adormercerem” por frações de segundo. As consequências podem ser graves especialmente para pessoas responsáveis por tarefas que exigem alerta constante.
Cirelli e seus colaboradores inseriram sondas ultrafinas dentro do cérebro de onze camundongos adultos para monitorar a atividade elétrica em subgrupos de neurônios no córtex motor, responsável pela coordenação motora ‘semiautomática’. Os roedores foram mantidos acordados durante quatro horas além do horário em que normalmente vão dormir, com a ajuda de objetos novos introduzidos na gaiola para mantê-los interessados – e ativos.
O monitoramento cerebral mostrou que, mesmo quando tudo indicava que os animais estavam acordados e ativos, neurônios em áreas específicas não estavam “funcionando”. Em outras palavras, partes do cérebro permaneceram adormecidas enquanto outras continuavam despertas.
Em resumo, as evidências acima mostram que o cérebro é um órgão funcionalmente heterogêneo. Não só algumas de suas partes podem adormecer em estágios diferentes em relação à outras, mas as pesquisas já surpreenderam algumas regiões do cérebro dormindo enquanto outras estavam funcionando a todo vapor. O sono é um fenômeno fantástico da fisiologia, e entender a sua relação com o cérebro bem como as repercussões dos hábitos de sono na nossa vida diária são objetivos fundamentais da neurociência.
Referências e Leitura Complementar:
- Jang, R. S., Ciliberti, D., Mankin, E. A., & Poe, G. R. (2022). Recurrent Hippocampo-neocortical sleep-state divergence in humans. Proceedings of the National Academy of Sciences, 119(44), e2123427119. ➞ Ler Artigo
- Sarasso, S., Proserpio, P., Pigorini, A., Moroni, F., Ferrara, M., De Gennaro, L., … & Nobili, L. (2014). Hippocampal sleep spindles preceding neocortical sleep onset in humans. Neuroimage, 86, 425-432. ➞ Ler Artigo
- Ferrara, M., & De Gennaro, L. (2011). Going local: insights from EEG and stereo-EEG studies of the human sleep-wake cycle. Current Topics in Medicinal Chemistry, 11(19), 2423-2437. ➞ Ler Artigo
- Vyazovskiy, V. V., Olcese, U., Hanlon, E. C., Nir, Y., Cirelli, C., & Tononi, G. (2011). Local sleep in awake rats. Nature, 472(7344), 443-447. ➞ Ler Artigo