O termo “personalidade” é utilizado para nomear características pessoais que influenciam a forma que cada sujeito pensa, sente, se comporta e se relaciona. Fortes evidências sustentam a ideia da interação entre fatores genéticos e ambientais na formação da personalidade humana¹.
Personalidades mal adaptativas apresentam um padrão de pensamento, sentimento e comportamento desviante da cultura e do meio no qual o sujeito está inserido. Ou seja, o padrão de funcionamento atípico é o componente central de todos os transtornos de personalidade (TP)¹, enquanto personalidades adaptativas apresentam tipos de funcionamento mais esperados e desejados, diante de uma determinada cultura e sociedade.
Modelo de personalidade Big Five
O modelo de personalidade de cinco fatores (Big Five) consiste nos seguintes domínios², ³:
- Neuroticismo: compreendido como o nível de ajustamento emocional do indivíduo, ou seja, encontra-se no campo das afetividades positivas ou negativas.
- Extroversão: domínio associado com a quantidade e frequência das interações interpessoais, no qual o sujeito apresenta uma postura extrovertida ou introvertida.
- Abertura à experiência: relacionado aos comportamentos exploratórios e a busca por novas experiências, conhecido também como o domínio de “não convencionalidade”.
- Socialização: refere-se as formas de interação que o sujeito possui. Conhecido também como o domínio da “agradabilidade”.
- Realização: baseia-se no grau de organização e persistência do sujeito para alcançar seus próprios objetivos.
Todos os domínios podem ser adaptativos ou mal adaptativos, dependendo do contexto e da intensidade. Por exemplo, a maioria dos traços de socialização é adaptativa, tais como: honestidade, cooperação e humildade. No entanto, posturas de autossacrifício e de subserviência nas relações podem ser consideradas variáveis desadaptativas sobre o mesmo domínio³.
No campo da neuropsicologia, existem escalas aprovadas referente aos cinco domínios no Sistema de Avaliação dos Testes Psicológicos (Satepsi). Os instrumentos possibilitam melhor investigação sobre a personalidade pelos profissionais da área².
Desafios clínicos nos transtornos de personalidade
Os transtornos de personalidade (TP) são categorizados em três grupos: A (paranóico, esquizóide e esquizotípico), B (anti-social, limítrofe, histriônico e narcisista) e C (evitativo, dependente e obsessivo-compulsivo)⁴.
Anteriormente, acreditava-se que os TP eram duradouros e inflexíveis¹,⁵. No entanto, estudos demonstram que a estabilidade e duração dos TP não são tão diferentes dos outros transtornos mentais – como os de humor. Porém, estudos sobre o tema ainda carecem de resultados mais robustos². Uma das justificativas levantada pela literatura é que as pessoas com TP tendem a buscar ajuda médica por outras questões de saúde, e não pelo quadro psicológico, mantendo limitada a compreensão sobre o transtorno mental.
Vale ressaltar que apenas metade dos sujeitos com TP atendem os critérios diagnósticos para um transtorno de personalidade específico, enquanto a outra metade recebe diagnóstico de transtorno de personalidade não especificado¹. A impulsividade como uma característica compartilhada entre o transtorno de personalidade antissocial e borderline é um fator que também dificulta o diagnóstico diferencial⁶.
Ainda referente ao desafio clínico, cada TP representa um conjunto de traços desadaptativos de personalidade, tornando o desenvolvimento de um programa de tratamento uniforme bastante desafiador³. Atualmente, o transtorno de personalidade borderline e o transtorno de personalidade antissocial apresentam maior literatura científica, o que permite o oferecimento de tratamentos baseados em evidências.
Fatores relacionados aos transtornos de personalidade
Os transtornos de personalidade estão associados à baixa qualidade de vida, mortalidade prematura, maior risco de acidente vascular cerebral (AVC) e doença arterial coronariana. Resultados apontam que ter TP está relacionado a obtenção de taxas mais elevadas de dor e, consequentemente, maior uso de analgésicos e busca por cuidados de atenção primária¹.
Quadros mais graves de TP foram relacionados a comportamentos criminosos, transtornos de conduta, institucionalização, desemprego e falta de moradia. Além disso, pacientes com TP grave são mais suscetíveis a apresentarem outros diagnósticos psiquiátricos, tais como transtornos de humor, abuso de substâncias e outros tipos de TP⁷.
Fatores de risco dos transtornos de personalidade
De acordo com a literatura, nenhum componente isolado pode ser caracterizado como agente causal do desenvolvimento de um TP, mas uma série de combinações genéticas e ambientais. Um artigo sobre o tema aponta que alguns fatores combinados parecem predispor o desenvolvimento de um comportamento antissocial durante a vida adulta, tais como: predisposição genética, exposição intrauterina a substâncias (álcool e outras drogas), violência infantil, negligência dos cuidados parentas, dificuldade de aprendizagem e baixo desempenho escolar⁶.
Relacionamentos e transtornos de personalidade
Dentre os problemas mais evidenciados nos transtornos de personalidade, encontra-se a dificuldade do sujeito em manter relacionamentos interpessoais saudáveis¹.
Considerando a tendência de distanciamento (desapego) físico e emocional, o estabelecimento de uma aliança terapêutica é um forte preditor de um tratamento bem-sucedido. Portanto, o profissional de saúde mental deve promover uma relação estruturada e estável com o paciente, a fim de garantir maior adesão e consequentemente melhores resultados terapêuticos¹. Estudos sugerem que a psicoterapia deve ser o tratamento principal nos quadros de TP, enquanto fármacos devem ser complementares¹.
Estudos de neuroimagem nos transtornos de personalidade
Estudos indicam alterações cerebrais frontais, principalmente no córtex orbitofrontal nos quadros de transtorno de personalidade antissocial. Também foram encontradas alterações nas estruturas subcorticais do sistema límbico, na amígdala, no hipocampo e no núcleo caudado⁶. Uma metanalise indicou que a estrutura pré-frontal apresenta uma redução significativa em indivíduos com o transtorno⁸.
Nos quadros de transtorno de personalidade borderline, algumas descobertas são divergentes: alguns estudos demonstraram maior ativação da amígdala, ínsula, áreas occipitais, frontais e temporais, enquanto outras pesquisas identificaram diminuição na ativação das regiões frontal e temporal, córtex cingulado e núcleo accumbens⁹.
O papel da amígdala no processo emocional é bem estabelecido pelas neurociências⁹. Outros transtornos mentais, como os de humor, também apresentam maior ativação da amígdala, caracterizando a desregulação emocional dos quadros. No entanto, essa alteração pode ser normalizada através de tratamentos (farmacológico e psicoterapêutico) eficazes⁹.
Alteração nos neurotransmissores
Serotonina. Estudos observaram que medicamentos moduladores de serotonina são capazes de alterar traços de personalidade¹. Pesquisas sugerem que prejuízos na função serotoninérgica aparecem na etiologia de diversos transtornos mentais, tais como: ansiedade, depressão e transtornos relacionados à impulsividade (ex: transtorno de personalidade antissocial e borderline)⁶.
Ocitocina. A manipulação dos níveis de ocitocina pode suscitar uma mudança na cognição social de indivíduos saudáveis, sendo capaz de aumentar a empatia, confiança e interação social. No entanto, a aplicação de ocitocina como tratamento nos transtornos de personalidade ainda não foi bem explorada⁸. Uma revisão sistemática sobre o tema investigou se os níveis de ocitocina de pacientes psiquiátricos diferem dos níveis encontrados em sujeitos saudáveis (grupo controle). Apesar de identificarem concentrações menores em alguns transtornos, os autores apontam que há grande heterogeneidade no resultado das pesquisas¹⁰.
Apesar do interesse milenar sobre a personalidade humana, ainda há mais perguntas que respostas. Pesquisas futuras são necessárias para maior esclarecimento desse campo de estudo. Com os avanços científicos, programas de prevenção, promoção e reabilitação à saúde mental serão cada vez mais efetivos.
Referências e Leitura Complementar:
- Ekselius L. (2018). Personality disorder: a disease in disguise. Upsala Journal of Medical Sciences, 123(4), 194-204. ➞ Ler Artigo
- Silva, Izabella Brito, & Nakano, Tatiana de Cássia. (2011). Modelo dos cinco grandes fatores da personalidade: análise de pesquisas. Avaliação Psicológica, 10(1), 51-62. Recuperado em 19 de fevereiro de 2024. ➞ Ler Artigo
- Widiger, T. A., Crego, C., Rojas, S. L., & Oltmanns, J. R. (2018). Basic personality model. Current Opinion in Psychology, 21, 18-22. ➞ Ler Artigo
- Karukivi, M., Vahlberg, T., Horjamo, K., Nevalainen, M., & Korkeila, J. (2017). Clinical importance of personality difficulties: diagnostically sub-threshold personality disorders. BMC Psychiatry, 17(1), 16. ➞ Ler Artigo
- d’Huart, D., Seker, S., Bürgin, D., Birkhölzer, M., Boonmann, C., Schmid, M., & Schmeck, K. (2023). The stability of personality disorders and personality disorder criteria: A systematic review and meta-analysis. Clinical Psychology Review, 102, 102284. ➞ Ler Artigo
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- Zimmerman, M., Morgan, T. A., & Stanton, K. (2018). The severity of psychiatric disorders. World Psychiatry: Official Journal of the World Psychiatric Association (WPA), 17(3), 258-275. ➞ Ler Artigo
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- Degasperi, G., Cristea, I. A., Di Rosa, E., Costa, C., & Gentili, C. (2021). Parsing variability in borderline personality disorder: a meta-analysis of neuroimaging studies. Translational Psychiatry, 11(1), 314. ➞ Ler Artigo
- Ferreira, A. C., & Osório, F. L. (2022). Peripheral oxytocin concentrations in psychiatric disorders – A systematic review and methanalysis: Further evidence. Progress in Neuro-psychopharmacology & Biological Psychiatry, 117. ➞ Ler Artigo
Muito bom! Obrigada pelo esclarecimento e direcionamentos de estudo! =)