Este artigo é dedicado a outras células também presentes no sistema nervoso, dotadas de uma gama enorme de funções, sem as quais a funcionalidade neuronal estaria prejudicada. Estas células são os astrócitos.
No tecido nervoso normal, ocorrem dois tipos: os astrócitos protoplasmáticos e os fibrosos. Enquanto os protoplasmáticos predominam na substância cinzenta, os fibrosos ocorrem principalmente na substância branca. Aqueles têm prolongamentos mais numerosos, curtos, delicados e ramificados em relação a estes. Ambos apresentam muitos prolongamentos que terminam em vasos sanguíneos por uma expansão à maneira de trombeta, o pé sugador (nome consagrado pelo uso, porém equivocado, pois os astrócitos não sugam vasos).
Para confirmar a subestimada importância dos astrócitos e fazer você dedicar mais atenção a essas ‘células estreladas’, confira oito importantes funções que lhes são atribuídas:
1. Papel no neurodesenvolvimento e migração neuronal
Uma das muitas funções dos astrócitos é a sua interação com neurônios que migram junto com as projeções das células gliais durante o desenvolvimento do sistema nervoso central. As células gliais, também conhecidas como glia radial, formam estruturas que fornecem essa via de migração para os neurônios. Estudos imunocitoquímicos confirmaram que os processos das células gliais radiais contêm proteína ácida fibrilar glial e vimentina. Essas células, consideradas astrócitos imaturos, perdem gradualmente a vimentina durante o processo de maturação e se diferenciam em astrócitos maduros. Este processo é concluído após o término da migração neuronal.
2. Sustentação mecânica do tecido nervoso
Fibrilas gliais. Os astrócitos contêm no citoplasma filamentos intermediários constituídos por vimentina e por uma proteína exclusiva, a proteína glial fibrilar ácida (glial fibrillary acidic protein ou GFAP). Esses filamentos, em microscopia óptica tradicional, denominam-se fibrilas gliais. As fibrilas gliais têm função de sustentação mecânica: os astrócitos e seus prolongamentos constituem uma trama ancorada nos vasos, na qual se apoiam os neurônios e outras células.
Moléculas de adesão e matriz extracelular. Moléculas de adesão e várias proteínas da matriz extracelular são importantes para o desenvolvimento e manutenção da integridade estrutural do sistema nervoso central a nível celular e desempenham um papel importante na reparação e regeneração após lesão. Algumas dessas moléculas são a laminina, fibronectina, moléculas de adesão celular neuronal e a citotoxina J1. A principal fonte de produção dessas moléculas são os astrócitos.
3. Produção de fatores neurotróficos e promotores de neuritos
Como células de suporte e reguladoras dos neurônios, os astrócitos são necessários para a sobrevivência dos neurônios e estão envolvidos na formação de neuritos. Eles servem como fonte de fatores solúveis necessários para o suporte e sobrevivência dos neurônios, bem como proteínas de matriz ligadas ao substrato, importantes para a formação e expansão de neuritos. Esses fatores neurotróficos e promotores de neuritos incluem moléculas de baixo peso molecular, como o piruvato e outras necessárias para o metabolismo energético neuronal e proteínas da matriz extracelular, como a laminina, respectivamente. Os astrócitos são células que produzem fator de crescimento nervoso e proteína S100, que são importantes para o alongamento e crescimento de neuritos. Além disso, os astrócitos são uma fonte de esteróides neuroativos, incluindo progesterona, estradiol e vários metabólitos com efeitos sinápticos.
4. Formação e manutenção da barreira hematoencefálica
Os prolongamentos astrocitários recobrem a superfície externa dos vasos, desde artérias e veias até capilares. A interação dos astrócitos com as células endoteliais dos capilares é essencial para a modificação destas, constituindo a barreira hematoencefálica.
A barreira hematoencefálica é uma fronteira altamente seletiva de células endoteliais, pericitos e astrócitos que atua como uma barreira de difusão, impedindo a entrada de certas moléculas no parênquima cerebral de acordo com seu tamanho e polaridade. Os astrócitos contribuem para a formação e manutenção da barreira hematoencefálica. Eles fornecem suporte estrutural e influenciam o transporte de moléculas entre a vasculatura e as células gliais, alterando as propriedades de transporte das células endoteliais. Os astrócitos podem alterar a atividade enzimática no endotélio cerebral, como a atividade da fosfatase alcalina e da Na + -K + -ATPase, modificar o transporte de aminoácidos neutros e aumentar a capacidade de transporte de aminoácidos neutros e sistemas de transporte de glicose no endotélio cerebral.
5. Metabolismo energético neuronal
Os astrócitos dão uma contribuição importante para o metabolismo do sistema nervoso central. Os astrócitos são os principais locais de acumulação de grânulos de glicogênio, e os maiores estoques de glicogênio nos astrócitos estão nas áreas de alta densidade sináptica. Esses estoques de glicogênio são usados para manter a atividade neuronal durante alta atividade neuronal e durante episódios de hipoglicemia. Através do contato entre os vasos sanguíneos, axônios nos nódulos de Ranvier, pericários neuronais e sinapses, os processos dos astrócitos estão bem posicionados para absorver glicose dos vasos sanguíneos e fornecer metabólitos de energia para vários elementos neuronais na substância branca e cinzenta
6. Regulação do microambiente cerebral
Na substância cinzenta, os prolongamentos dos astrócitos protoplasmáticos envolvem os neurônios, mantendo um microambiente adequado às funções metabólicas destes. Os astrócitos estão envolvidos na regulação do pH, concentração de íons e osmolaridade no sistema nervoso central. Para a atividade neuronal normal, as alterações no microambiente cerebral devem ser rigorosamente controladas. A despolarização celular que ocorre durante a neurotransmissão resulta em mudanças perceptíveis nas concentrações de íons, pH extracelular e osmolaridade. Os astrócitos e também os oligodendrócitos desempenham um papel importante na manutenção do ambiente extracelular, regulando o pH com a ajuda da enzima anidrase carbônica. Eles contêm canais iônicos para potássio, sódio, cálcio, cloreto e bicarbonato. Por exemplo, quando ocorre um forte fluxo de íons potássio no espaço extracelular durante a neurotransmissão, os astrócitos acumulam potássio e o removem do espaço extracelular. Através de junções comunicantes, o potássio é transferido de áreas de alta atividade neuronal para áreas de baixa atividade, para o LCR e para o sangue. Este efeito é referido como buffer espacial e destaca a importância do sincício glial na regulação e manutenção do microambiente.
7. Neurotransmissão
A neurotransmissão, uma das principais funções do sistema nervoso, envolve o armazenamento e liberação de moléculas transmissoras nas sinapses e a interação desses transmissores com receptores pós-sinápticos. Os neurônios têm um sistema de captação de alta afinidade para neurotransmissores que os libera da fenda sináptica. Os astrócitos também exibem essas propriedades e desempenham um papel fundamental na neurotransmissão, absorvendo os transmissores e apoiando os neurônios, secretando inclusive os chamados gliotransmissores. A capacidade desses sistemas de captação varia amplamente, incluindo sua localização em diferentes regiões do cérebro e para diferentes neurotransmissores. Além disso, restringem a difusão dos neurotransmissores liberados.
8. Secreção de neuro-hormônios
Os astrócitos também estão envolvidos na secreção de neuro-hormônios. Com seus processos, os astrócitos neuro-hipofisários interagem com as células neuroendócrinas de acordo com a necessidade de certos hormônios, como durante a desidratação ou lactação.
9. Isolamento elétrico
Os prolongamentos dos astrócitos protoplasmáticos funcionariam como isolantes elétricos de certas sinapses, impedindo que a difusão de neurotransmissores excite indesejavelmente sinapses vizinhas.
10. Angiogênese
A angiogênese é um processo complexo que envolve diversas etapas, como ativação de células endoteliais, dissolução da membrana basal, replicação e migração de células endoteliais e formação de cordões e tubos ocos com maturação final e restauração da membrana basal. Os astrócitos também estão ativos durante esse processo, induzindo as células endoteliais a formarem estruturas semelhantes a capilares. Seu envolvimento na angiogênese é importante para o desenvolvimento e reparo do sistema nervoso central. Esta interação requer contato físico entre astrócitos e células endoteliais. As células endoteliais separadas dos astrócitos não formam tais estruturas.
11. Desintoxicação
Os astrócitos são importantes para a desintoxicação e remoção de substâncias tóxicas do sistema nervoso central. Em particular, o seu papel na captação e metabolismo dos neurotransmissores de aminoácidos excitatórios é bem conhecido, evitando a acumulação das suas concentrações neurotóxicas que, de outra forma, prejudicariam a neurotransmissão. O neurotransmissor de aminoácido excitatório mais conhecido é o glutamato. A glutamina sintetase nos astrócitos está envolvida no metabolismo da amônia e evita concentrações tóxicas desse íon. Como os astrócitos contêm proteínas de ligação a metais, como a metalotioneína, eles também estão envolvidos na captação e sequestro de alguns metais pesados. Essas proteínas estão envolvidas na remoção de alguns metais, como o chumbo, e evitam seu acúmulo no sistema nervoso central a níveis tóxicos.
12. Cicatrização e regeneração
Atuam na cicatrização do tecido nervoso, por meio da formação dos astrócitos gemistocíticos, responsáveis pela gliose. Estudos recentes sugerem que os astrócitos podem ativar a maturação e a proliferação de células-tronco nervosas adultas e ainda, que fatores de crescimento produzidos por eles podem ser críticos na regeneração dos tecidos cerebrais ou espinhais danificados por traumas ou enfermidades.
13. Papel na resposta imune e fagocitose
Os astrócitos também desempenham um papel importante na resposta imunológica. Eles podem funcionar como macrófagos e atuar como moduladores das funções imunológicas. Eles são capazes de fagocitose e servem como células apresentadoras de antígenos que são induzidas a expressar e produzir moléculas que contribuem e facilitam as respostas imunológicas. O sistema nervoso central pode ser considerado um local imunologicamente privilegiado até certo ponto. É isolado do sistema imunológico do corpo devido à barreira hematoencefálica e à ausência de drenagem linfática e a uma população significativa de células linfóides residentes. No estado de repouso, os astrócitos normalmente não expressam antígenos do complexo principal de histocompatibilidade (MHC) ou os expressam apenas em níveis muito baixos. A expressão de moléculas de MHC pode ser induzida por uma variedade de indutores, incluindo vírus e interferon-gama (IFN-γ). Moléculas de adesão, como as moléculas de adesão intercelular (ICAM), expressas pelos astrócitos, podem facilitar as interações astrócitos-linfócitos e promover sua entrada no sistema nervoso central, contribuindo para as respostas imunes. A indução da expressão de ICAM é aumentada quando os astrócitos são expostos a certos vírus, produtos bacterianos como lipopolissacarídeos e IFN-γ e interleucina-1.
14. Memória, aprendizagem e outras funções cognitivas
Desde que um grupo de neurocientistas descobriu que ondas de cálcio propagam através de redes de astrócitos, a visão que se tinha dessas células nunca mais foi a mesma. Sabe-se também que são muito mais numerosas que os próprios neurônios, em números absolutos e relativos, e que, portanto, deveriam desempenhar um papel mais importante no rol de funções neurais, inclusive cognitivas. Hoje, acredita-se que tal atividade elétrica relacionada ao cálcio desempenharia um papel significativo no aumento da capacidade de aprendizagem.
Os cientistas continuam a debater se os astrócitos integram a aprendizagem e a memória no hipocampo. Recentemente, foi demonstrado que o enxerto de células progenitoras gliais humanas nos cérebros de camundongos nascentes fará com que as células se diferenciem em astrócitos. Após a diferenciação, essas células aumentam o LTP e melhoram o desempenho da memória nos ratos.
Os astrócitos humanos são maiores e mais complexos do que os dos mamíferos infraprimatas, sugerindo que o seu papel no processamento neural se expandiu com a evolução. Foi demonstrado que a manipulação da sinalização intracelular astrocítica, como a ativação de sinais de Ca2+, modula numerosos domínios do comportamento animal, incluindo atenção, medo, tomada de decisão e memória.
Referências e Leitura Complementar:
- Gradisnik, L., & Velnar, T. (2023). Astrocytes in the central nervous system and their functions in health and disease: A review. World Journal of Clinical Cases, 11(15), 3385-3394. ➞ Ler Artigo
- Rupareliya, V. P., Singh, A. A., Butt, A. M., Hariharan, A., & Kumar, H. (2023). The “molecular soldiers” of the CNS: Astrocytes, a comprehensive review on their roles and molecular signatures. European Journal of Pharmacology, 176048. ➞ Ler Artigo
- Zhou, Z., Okamoto, K., Onodera, J., Hiragi, T., Andoh, M., Ikawa, M., … & Koyama, R. (2021). Astrocytic cAMP modulates memory via synaptic plasticity. Proceedings of the National Academy of Sciences, 118(3), e2016584118. ➞ Ler Artigo
- Han, X., Chen, M., Wang, F., Windrem, M., Wang, S., Shanz, S., … & Nedergaard, M. (2013). Forebrain engraftment by human glial progenitor cells enhances synaptic plasticity and learning in adult mice. Cell Stem Cell, 12(3), 342-353. ➞ Ler Artigo
Eu achei interessante demais! Obrigada pelo artigo, como sempre, super bem escrito.
Só um ponto, é algo pessoal por uma forma minha de aprendizado, mas como sou visual, senti falta de figuras no decorrer do texto para uma melhor compreensão – o que me levou a aprofundar mais buscando em outros meios, e entrar nas referências mencionadas. Abraço!!
Olá Maria Fernanda! Obrigado pelo feedback! Sim, gradativamente iremos evoluir as publicações, inclusive atualizando as antigas quanto ao conteúdo, referências e inserções visuais!