Como já mencionamos em outro artigo aqui mesmo no site, o corpo humano é o lar de trilhões de microorganismos. Esses micróbios residem em todo o corpo, da pele ao nariz, mas a maioria vive no sistema digestivo. Esses habitantes intestinais, chamados coletivamente de microbiota intestinal, são mais do que apenas residentes passivos. Eles moldam ativamente o nosso bem-estar, inclusive aspectos do nosso sono.
Você têm apresentado dificuldades para dormir? Fica se revirando a noite toda sem pregar o olho? Toca o despertador e já vai apertando o botão de soneca repetidas vezes? Acorda já cansado, como se a tão esperada noite de descanso não tivesse lhe servido de nada? Diversas pesquisas têm evidenciado papeis desempenhados por bactérias intestinais na regulação do sono e também, por outro lado, em sua desregulação.
As principais bactérias do nosso intestino
A microbiota intestinal é composta por várias espécies de microrganismos, incluindo bactérias, leveduras e vírus.
Em relação à taxonomia, as bactérias são classificadas de acordo com filos, classes, ordens, famílias, gêneros e espécies. De forma geral, seis filos principais colonizam o trato gastrointestinal humano: Bacteroidetes, Firmicutes, Proteobacteria, Actinobacteria, Fusobacteria e Verrucomicrobia. Sabe-se que mais de 90% da composição bacteriana intestinal considerada saudável é representada por Bacteroidetes e Firmicutes.
O filo Firmicutes é composto por mais de 200 gêneros diferentes, como Lactobacillus, Bacillus, Clostridium, Enterococcus e Ruminicoccus, sendo que o gênero Clostridium representa 95% desse filo. Bacteroidetes têm Bacteroides e Prevotella como gêneros predominantes. Já o filo Actinobacteria é proporcionalmente menos abundante e representado principalmente pelo gênero Bifidobacterium (as bifidobactérias).
Um pouco mais sobre as bifidobactérias
Vale ressaltar que as bifidobactérias, embora presentes no intestino humano em menor proporção, desempenham um importante papel, favorecendo o estado de simbiose (equilíbrio), visto que elas melhoram a barreira intestinal e suprimem citocinas pró-inflamatórias. Dentre suas funções, destacam-se (1) a maturação do sistema imunológico durante o início da vida e (2) a preservação da homeostase imunológica ao longo dela, (3) a preservação das funções de barreira intestinal, a (4) proteção contra patógenos pela produção de bacteriocinas, diminuição do pH luminal pela produção de ácidos e bloqueio da adesão de patógenos à mucosa intestinal.
Curiosidade: as bifidobactérias e os lactobacilos são os gêneros mais comumente utilizados como probióticos.
Bactérias intestinais, duração do sono, cronotipo, apneia…
Pesquisadores da Universidade de Shandong na China embarcaram em um estudo inovador para desvendar a relação entre nossos hábitos de sono e as bactérias que habitam nosso intestino. A pesquisa foi conduzida através da análise de extensas bases de dados contendo informações de diversas partes do mundo. Uma das principais descobertas dessa pesquisa é a existência de bactérias intestinais específicas que parecem ter um impacto direto na duração do sono.
Ou seja, as características da nossa microbiota intestinal influenciam a quantidade de horas de sono de que precisamos para nos sentirmos descansados. As bactérias intestinais podem estar envolvidas na regulação de processos fisiológicos relacionados ao sono, como por exemplo a produção de melatonina, o neurohormônio responsável pela indução do mesmo.
No estudo, a quantidade de certos tipos de bactérias, chamadas Lachnospiraceae UCG004 e Odoribacter, promoveu um sono mais prolongado, enquanto Selenomonadales e Negativicutes aumentaram o risco de insônia.
Outra conclusão interessante: foi observada uma conexão entre as bactérias intestinais e o cronotipo, que é a nossa predisposição natural para dormir em determinados momentos do dia. Pessoas que possuem certas cepas de bactérias intestinais podem ser mais propensas a serem vespertinas, ou noturnas, preferindo ficar acordadas até tarde e acordar mais tarde pela manhã. Por outro lado, indivíduos com outras cepas bacterianas podem ser mais inclinados a serem diurnos, ou matutinos, acordando cedo e sentindo-se mais alertas durante as primeiras horas do dia.
Especificamente, os pesquisadores descobriram que os indivíduos notívagos, ou seja, aqueles com um cronotipo noturno, podem ter essa característica devido a uma maior presença de Enterobacteriaceae ou Anaerofilum no intestino. Curiosamente, ambos os tipos de bactérias também têm sido associados à obesidade.
Por fim, o estudo mostrou que uma abundância de Ruminococcus se associou a um risco aumentado de ronco, enquanto a presença de Senegalimassilia pareceu diminuir esse risco. Paralelamente, verificou-se que os Ruminococcus são mais prevalentes em pessoas com obesidade, enquanto aqueles com peso saudável apresentam mais Senegalimassilia.
Microbiota e duração do sono em crianças
Certos tipos de bactérias também parecem estar associados a um sono melhor nas crianças. Em um estudo publicado em janeiro de 2022 no periódico Sleep, os investigadores examinaram o papel do microbioma intestinal nos padrões de sono em crianças com menos de 5 anos de idade. Eles descobriram que bactérias específicas podem regular o sono, modulando a forma como o cérebro controla os processos químicos no corpo e no sistema imunológico. O estudo descobriu que crianças com alta concentração de bifidobactérias dormiam mais horas durante a noite. Além disso, a população de bacteroides foi maior em crianças que passaram mais tempo dormindo em comparação com o tempo na cama tentando dormir. Essas mesmas crianças também tiveram menos períodos de vigília após inicialmente adormecerem.
Embora sejam necessárias mais pesquisas para compreender a relação entre a saúde intestinal e o sono, resultados de estudos como esse enfatizam o potencial de tratamentos personalizados baseados no intestino para regular o sono. Estes resultados também sublinham a importância de manter um equilíbrio saudável das bactérias intestinais para um melhor sono e bem-estar geral.
Dieta na regulação das bactérias intestinais e sono
A dieta exerce um papel significativo na modulação da microbiota intestinal. Determinados nutrientes provocam mudanças previsíveis nos gêneros bacterianos habitantes do intestino humano. O consumo de certos alimentos pode afetar a composição da microbiota da seguinte maneira:
(1) A ingestão de proteína animal parece positivamente correlacionada com a diversidade microbiana geral, aumentando a abundância de organismos tolerantes à bile, como os Bacteroides;
(2) O alto consumo de gordura saturada parece aumentar a contagem de anaeróbios totais na microflora, com abundância relativa de Bacteroides;
(3) Estudos em humanos não relataram que o consumo frequente de gordura insaturada altera significativamente a microbiota, porém estudos com ratos relataram aumento em Actinobacteria (Bifidobacterium e Adlercreutzia), bactérias de ácido láctico (Lactobacillus e Streptococcus) e Verrucomicrobia (Akkermansia muciniphila). Novos ensaios são aguardados sobre o assunto;
(4) Tanto carboidratos digeríveis quando não digeríveis (fibras) são comumente relatados na literatura por enriquecer as populações de bifidobactérias e suprimir os Clostridium, embora apenas as fibras impactem positivamente a presença no que diz respeito a Lactobacillus Ruminococcus, Eubacterium rectale e Roseburia;
(5) Por último, o consumo de probióticos e polifenóis aumentam as bifidobactérias e os lactobacilos.
Adicionalmente, há evidências de associações significativas entre o aumento de algumas bactérias (Prevotella e outros Firmicutes) em indivíduos que aderiram à dieta do mediterrâneo.
A presença de Bacteroides, Firmicutes (como Lactobacillus e Streptococcus), Verrucomicrobia (Akkermansia muciniphila) e Actinobactérias apresentou correlação positiva com a qualidade do sono, segundo o estudo de Smith e colcaboradores (2019).
Conclusão
Para apoiar um microbioma intestinal saudável e diversificado, os especialistas recomendam uma dieta rica em prebióticos e probióticos. Os prebióticos, encontrados em alimentos como vegetais e ricos em fibras, apoiam o crescimento de bactérias benéficas no intestino. Por outro lado, os probióticos introduzem bactérias saudáveis diretamente no corpo e podem ser encontrados em iogurte, massa e outros alimentos fermentados.
Ao nutrir uma microbiota intestinal diversificada, você não só apoia a sua saúde geral, mas também prepara o caminho para uma noite de sono mais repousante.
Referências e Leitura Complementar:
- Mascarenhas, G. C. M., Salles, P. P., & do Amaral, M. M. L. S. (2021). O impacto da microbiota intestinal na qualidade do sono: uma revisão integrativa The impact of gut microbiota on sleep quality: An integrative review. Brazilian Journal of Development, 7(7), 70985-70998. ➞ Ler Artigo
- Yue, M., Jin, C., Jiang, X., Xue, X., Wu, N., Li, Z., & Zhang, L. (2023). Causal effects of gut microbiota on sleep-related phenotypes: a two-sample Mendelian randomization study. Clocks & Sleep, 5(3), 566-580. ➞ Ler Artigo
- Wang, Y., van de Wouw, M., Drogos, L., Vaghef-Mehrabani, E., Reimer, R. A., Tomfohr-Madsen, L., & Giesbrecht, G. F. (2022). Sleep and the gut microbiota in preschool-aged children. Sleep, 45(6), zsac020. ➞ Ler Artigo
- Smith, R. P., Easson, C., Lyle, S. M., Kapoor, R., Donnelly, C. P., Davidson, E. J., … & Tartar, J. L. (2019). Gut microbiome diversity is associated with sleep physiology in humans. PLoS One, 14(10), e0222394. ➞ Ler Artigo