Existe alguém que não mente? Será que os animais também mentem? Quais seriam as áreas do cérebro relacionadas à mentira? Estas e outras questões tratadas de uma forma especial e com muita neurociência!
Quando o cérebro quer enganar
1. Mentir é…
Afirmar aquilo que se sabe ser falso, ou negar o que se sabe ser verdadeiro. Enganar, iludir; ludibriar.
2. Mentimos desde criancinhas
Logo aos dois anos as crianças já são capazes de mentir, afirma artigo escrito pela psicóloga da Universidade Brock, Angela Evans, em parceria com Kang Lee, pesquisador da Universidade de Toronto, ambas do Canadá. Publicado na edição de janeiro da Developmental Psychology, o estudo com 41 crianças de dois anos e 24 de três, contrariou hipóteses anteriores de que só entre o terceiro e quarto ano de vida que se começa a mentir.
O experimento colocou os pequenos em uma situação tentadora: primeiro, escutavam os sons de um brinquedo e, sem poder vê-lo, deviam tentar adivinhar qual era. Em seguida, sem revelar de qual se tratava, o pesquisador saía da sala, vigiada por uma câmera oculta, e pedia que, durante sua ausência, a criança não espiasse o brinquedo. Dentre as voluntárias, 80% desobedeceram a ordem e espiaram. Dessas, 25% das mais jovens mentiram durante o teste. Entre as mais velhas, metade não disse a verdade. Apesar disso, destacam os cientistas, as crianças mais jovens não conseguiram manter a mentira ao serem de uma sequência de perguntas sobre o ocorrido.
Para Angela, a mentira das crianças durante a experiência se deu por conta de um arrependimento por terem desobedecido a ordem, não por buscarem iludir os adultos. O experimento permitiu também que os pesquisadores analisassem a capacidade cognitiva necessária para contar uma mentira, relacionando-a ao desenvolvimento cerebral. Segundo os autores, os resultados indicam que mentirosos precoces têm habilidades avançadas de compreensão e raciocínio, considerando o quão complexo pode ser o ato de reinventar uma situação passada.
3. Existem áreas cerebrais especialmente envolvidas com a mentira
Em certas regiões do cérebro, a atividade se intensificava de modo significativo sempre que os participantes recorriam à mentira. Chamou a atenção sobretudo a elevação da atividade cerebral em duas regiões específicas: o giro do cíngulo anterior e o córtex pré-frontal.
4. Mentir é reprimir a verdade
Ambas regiões citadas anteriormente auxiliam decisivamente na determinação dos conteúdos da memória que chegam à nossa consciência. O giro do cíngulo dirige a atenção e serve ao controle dos impulsos. No córtex pré-frontal, por outro lado, está sediada a instância inibidora do cérebro. Aí é rechaçado tudo que é irrelevante num dado momento e que, por isso, não deve ser enxergado mentalmente. Quando os participantes da experiência não foram obrigados a mentir, os pesquisadores não registraram alteração alguma da atividade cerebral. Pode parecer óbvio mas, para o cérebro, mentir é reprimir a verdade.
5. Mentir exige esforço mental
É de se supor, portanto, que a honestidade constitua, por assim dizer, o estado cognitivo normal. Em outras palavras: mentir exige esforço adicional dos neurônios. Este é o “preço” que o cérebro “paga” para impedir que a verdade seja dita.
6. Os ouvidos são mais “bobos” que os olhos
Em um experimento, um grupo de futuras enfermeiras assistiram a um vídeo com imagens de pessoas que haviam sofrido amputação de membros. A tarefa das participantes consistia em convencer um entrevistador que não assistia ao filme de que elas estavam vendo um belo vídeo com paisagens naturais e imagens agradáveis.
Para motivar o grupo de mentirosas por encomenda, foi lhes dito que também em seu cotidiano profissional elas frequentemente precisariam ocultar emoções negativas, tais como a consternação e o nojo diante dos pacientes, e que, por isso mesmo, o domínio da dissimulação era uma capacidade importante em seu ofício. Um segundo filme, exibindo bela paisagem costeira e descrito pelas participantes com sinceridade como tal, foi empregado como controle.
O que se descobriu: antes de termos consciência de um sentimento, já o estampamos no rosto através de “microexpressões faciais”. Estas duram menos de um quarto de segundo e nem mesmo as mentirosas mais convincentes foram capazes de ocultar por completo sua “verdadeira” atividade cerebral. No final das contas, os olhos podem perceber nuances que o ouvido deixa passar.
7. Mentir é sinal de inteligência social
O mais surpreendente nos resultados dessas pesquisas é que elas retiram, pouco a pouco, o estigma negativo das mentiras. Muitos antropólogos acreditam que esse tão destacado talento humano para artimanhas sutis e embustes astuciosos não constitui absolutamente uma capacidade a se lamentar. Sua origem não seria um pendor para a maldade, mas comporia, antes, elemento decisivo de nossa inteligência social. “Superestima-se o valor moral de se dizer a verdade”, escreve, por exemplo, David Nyberg, professor de filosofia e pedagogia na Universidade de Nova York. “Sem o engodo e o despistamento, nossas complexas relações seriam impensáveis”.
Uma mentirinha necessária sobre o novo e malogrado penteado de nossa vizinha com certeza presta maior serviço à convivência pacífica que a franqueza sem retoques. Assim como esse pequeno embuste, várias de nossas mentiras resultam sobretudo do desejo de dar uma alegria a nosso semelhante ou de, pelo menos, não o desmascarar ou ofender sem necessidade.
Depõe a favor dessa teoria o fato de, por trás de cada mentira deliberada, haver sempre um feito intelectual brilhante. Sim, pois esconder a verdade – e, em seu lugar, inventar uma história sólida e irrefutável – não apenas demanda muita criatividade como pressupõe a capacidade de se pôr mentalmente na pele dos outros: somente quando consegue contemplar a própria representação a partir do ponto de vista do ludibriado é que o mentiroso pode, à maneira de um diretor teatral, ajustar sua atuação para que ela seja convincente. O poder de imaginar como se é visto pela pessoa enganada, essa capacidade de pensar como o outro, está entre os feitos cognitivos mais característicos do ser humano.
Uma estratégia de sobrevivência? Numa sociedade mentirosa, o rigor particular para com a verdade traz consigo o perigo da marginalização. Ignorar mentiras e fazer vistas grossas aos engodos são componentes sólidos da comunicação interpessoal – quer isso nos agrade ou não. Quem não conhece muito bem ou não aceita as regras vigentes torna-se impopular. Foi assim que Bella DePaolo descobriu que jovens com muita sensibilidade para perceber mentiras e engodos e incapazes de mantê-los em segredo, foram avaliados tanto pelos colegas como pelos professores como menos hábeis socialmente.
Em oposição a isso, um estudo de Robert Feldman mostrou que adolescentes capazes de mentir de forma bastante convincente, não se deixando apanhar senão raras vezes, desfrutam de particular reconhecimento e sucesso em seu grupo. O psicólogo faz, portanto, uma defesa dos mentirosos: “De certo modo, mentir é um talento social”.
Até o papa Paulo IV (1476-1559) reconhecia como é humano violar o oitavo mandamento: “O mundo deseja ser iludido; pois que o seja, então”, declarou certa vez o chefe supremo da Igreja Católica. Os pesquisadores da mentira agora confirmam em laboratório essas palavras, e vão além: por trás de cada mentirinha escondem-se processos cognitivos complexos, sem os quais talvez a convivência humana não fosse sequer possível.
8. Já é possível supor uma mentira por meio de exames
Os mentirosos podem mesmo ter os dias contados. Cientistas americanos afirmam ser possível descobrir se uma pessoa está mentindo por meio de um exame de ressonância magnética cerebral. Investigadores da Universidade da Pensilvânia observaram as variações na atividade cerebral de um grupo de 18 voluntários durante um jogo de cartas.
De acordo com os cientistas, a cada vez que os jogadores tentavam enganar os demais elementos, a ressonância magnética revelava um padrão peculiar de atividade cerebral. O cérebro funciona de maneira diferente quando uma pessoa mente ou diz a verdade, afirma Daniel Langleben, um dos autores da investigação, acrescentando, no entanto, estar muito cauteloso antes de afirmar que essa técnica já pode ser, ou que poderá ser, usada, por exemplo, em uma investigação criminal.
A análise dos cientistas não engana ninguém. As partes do cérebro que são consideradas importantes para que as pessoas mantenham a atenção em alguma coisa ficaram ativas cada vez que um voluntário dizia não ter o cinco de paus. Também foram observadas variações em regiões do cérebro que são ativadas quando se cometem erros.
9. Nós, humanos, não somos os únicos a mentir
Na opinião dos biólogos da evolução, foi a própria vida social, com suas hierarquias e tramas de relações, que primeiro trouxe ao mundo a mentira deslavada. O falseamento intencional só pôde desenvolver-se em grupos complexos. Até mesmo os chimpanzés, que vivem em bando, são mestres da dissimulação. Valendo-se de truques, engodos e fingimentos, eles lutam por posição hierárquica, comida e parceiros sexuais. E correm algum risco ao fazê-lo. Uma vez flagrada sua trapaça, o preço a pagar é a degradação social.
Quem não deseja ser constantemente enganado precisa ter a capacidade de descobrir com precisão artifícios e enganações alheios. Os antropólogos vêem precisamente na constante corrida entre desmascaramento e aperfeiçoamento da mentira a força motriz que, do ponto de vista filogenético, talvez tenha sido a responsável pelo desenvolvimento da inteligência social. É possível que ela tenha dado origem até mesmo à linguagem verbal. Especialistas mais empedernidos chegam a defender a tese de que o ser humano deve o aumento de seu cérebro à pressão evolucionária por uma capacidade cada vez mais refinada de enganar.
10. Todo mundo mente
É fato científico que engodos e mentiras são nossos companheiros constantes. Em 1997, por exemplo, o psicólogo Gerald Jellison, da Universidade do Sul da Califórnia, Estados Unidos, ouviu as conversas diárias de 20 pessoas submetidas a uma experiência e analisou as fitas gravadas em busca de inverdades. O resultado é acachapante para os amantes da verdade: do ponto de vista estatístico, mesmo os mais sinceros participantes disseram uma mentira a cada oito minutos. “Em geral, são apenas mentirinhas, mas, de todo modo, são o que são: mentiras”, avalia Jellison.
Na opinião do psicólogo, procuramos constantemente desculpas para comportamentos que outros poderiam julgar inadequados. Assim, inventamos um engarrafamento como pretexto para um atraso, ainda que, sinceramente, não tivéssemos a menor intenção de ser pontual. Os maiores mentirosos revelados pela pesquisa de Jellison são pessoas com maior número de contatos sociais – vendedores, auxiliares de consultórios médicos, advogados, psicólogos e jornalistas.
Duas considerações finais: primeiramente, apesar da mentira ser um fenômeno cognitivo importante, difuso entre as pessoas, como visto em alguns trechos da matéria, não devemos deixar de combater aquele tipo de mentira que pode colocar em risco a harmonia social. Algumas delas são criminosas aliás. Em segundo lugar, agora que estamos mais espertos, se alguém lhe disser que não mente, ou que nunca mentiu, abra os olhos…
Referências: