A plasticidade sináptica é intrínseca ao desenvolvimento e função do cérebro, conferindo adaptabilidade ambiental, aprendizado e bem-estar geral. No entanto, a exposição a fatores do ambiente e outras influências socioculturais podem influenciá-la profundamente. Nesses casos, a neuroplasticidade pode se revelar problemática para a saúde e a performance do indivíduo.
Sem rodeios, a neuroplasticidade pode ser percebida como adaptativa quando resulta em ganho de função, ou como desadaptativa quando está associada a consequências comportamentais negativas ou não esperadas, como perda funcional ou aumento do tamanho da lesão. No entanto, o assunto é mais complexo do que parece. Leia com atenção os próximos parágrafos.
O paradoxo da neuroplasticidade
No livro “The Brain That Changes Itself” (“O Cérebro que se Transforma”), o médico psiquiatra e psicanalista Norman Doidge abordou a ideia paradoxal da plasticidade cerebral. Segundo ele, a neuroplasticidade pode ser tanto uma oportunidade para desenvolver comportamentos mais flexíveis quanto uma armadilha para nos prender em comportamentos rígidos.
O potencial plástico é o ponto de partida de todas as pessoas. Alguns indivíduos mantêm sua flexibilidade ao longo da vida adulta, enquanto outros perdem a espontaneidade, a criatividade e a imprevisibilidade da infância, passando a adotar uma rotina existencial repleta de comportamentos repetitivos que enrijecem nossa cognição. No entanto, até para desenvolver esses comportamentos rígidos precisamos de um cérebro plástico.
Neuroplasticidade(s) negativa e positiva
Tanto a neuroplasticidade positiva quanto a neuroplasticidade negativa referem-se a mudanças neuroquímicas e morfológicas que ocorrem entre os neurônios no cérebro e em outras regiões do sistema nervoso como resposta adaptativa às demandas ou pressões ambientais.
Tanto uma como a outra funcionam em um continuum de pressão ambiental. Como regra geral, quanto mais desafiador e inovador for o estímulo ambiental, mais neuroplasticidade positiva estará envolvida na adaptação a esse estímulo, formando mais conexões neuronais. A neuroplasticidade negativa funciona de maneira oposta, representando uma não construção e/ou uma desconstrução das conexões neuronais necessárias para se adaptar à pressão ambiental.
Quando falamos em número e densidade de conexões neuronais, na neuroplasticidade positiva elas aumentam, assim como a reserva cognitiva. Na neuroplasticidade negativa, o número, a densidade das conexões entre os neurônios e a reserva cognitiva diminuem.
Modelos de neuroplasticidade negativa
É sabido pela própria neurociência que cobaias colocadas em ambientes mais estimulantes tendem a desenvolver uma “fiação” neural mais complexa em seus cérebros, o que corresponderia a uma maior capacidade cognitiva. Por outro lado, alguns fatores já foram associados ao comprometimento dessa “fiação”, ou seja, fatores que predisporiam à neuroplasticidade negativa.
Em suas pesquisas, Mahncke e colaboradores destacaram como “inimigos da plasticidade cerebral positiva”: atividades não estimulantes, má nutrição, falta de higiene do sono, humor negativo (ex: depressão), estilo de vida sedentário e certos problemas de saúde. Como exemplo, eles destacaram o envelhecimento fisiológico e o traumatismo cranioencefálico possivelmente vinculados à neuroplasticidade negativa. Vamos entender melhor o que acontece nessas condições.
Envelhecimento fisiológico. Durante o processo natural de envelhecimento, as pessoas passam cada vez mais a vivenciar o processo de aprendizagem negativa. Como resultado de horários reduzidos de atividade, processamento ruidoso e controle neuromodulatório enfraquecido, o indivíduo idoso passa a depender de rotinas mais familiares e processos cognitivos mais simples e menos trabalhosos. Tal abordagem acaba acelerando o declínio cognitivo de uma maneira auto-reforçada.
Por exemplo, um hipotético idoso aposentado que está menos inclinado a participar de atividades cognitivas desafiadoras em comparação com quando estava trabalhando, também pode ter problemas de audição, memória e aprendizado devido a alterações na função da acetilcolina. Essas mudanças podem torná-lo menos propenso a decidir por novos aprendizados durante sua aposentadoria (como um curso para aprender um novo idioma). Esse engajamento reduzido, por sua vez, permitiria ou induziria a confiar em processos cognitivos mais simples e heurísticos. Nesse cenário, a aprendizagem negativa contribuiria para o desuso de áreas cerebrais envolvidas em operações cognitivas mais complexas, em última instância, culminando em uma neuroplasticidade negativa.
Traumatismo cranioencefálico (TCE). O TCE provoca inicialmente uma deterioração na estrutura e no funcionamento do cérebro, que por sua vez gera problemas comportamentais e acaba ocasionando prejuízos funcionais. Em outras palavras, as perdas cerebrais iniciais comprometeriam a motivação e a habilidade da pessoa para participar de atividades que requerem um alto nível cognitivo, resultando em desuso e aprendizagem negativa. A consequência é uma espiral descendente de alterações negativas na plasticidade cerebral e até mesmo neurodegeneração.
Plasticidade desadaptativa (ou disfuncional)
Outro termo encontrado para se referir a um tipo específico de neuroplasticidade que pode ser encarada como inoportuna ou inadequada é a neuroplasticidade desadaptativa, ou mal-adaptativa. Embora a capacidade neuroplástica do cérebro geralmente seja vista como benéfica (voltada a restaurar, aprimorar ou lapidar uma função), há momentos em que ela pode ser prejudicial. Nesses casos, as novas conexões cerebrais produzem sintomas aberrantes ou negativos.
Muitos são os exemplos de neuroplasticidade desadaptativa. Ela pode ser encontrada na fisiopatologia da dor fantasma e da cãibra do escritor (um tipo de distonia dependente de uso). Em pesquisas, ambos os exemplos mostraram anormalidades do córtex sensorial primário em associação com os sintomas dolorosos.
Outro exemplo de neuroplasticidade desadaptativa é o vício. O uso repetido de drogas e álcool causa mudanças nos circuitos cerebrais responsáveis pela interpretação e resposta a estímulos motivacionais relevantes. Isso resulta em alterações sistêmicas na captação de neurotransmissores que afetam os circuitos de recompensa no cérebro. Em particular, a liberação aumentada de dopamina nas células da área tegmental ventral para o córtex pré-frontal, amígdala e corpo estriado é causada pelo uso repetitivo de substâncias.
A associação entre o aumento da transmissão de dopamina e a sensação de recompensa provoca mudanças plásticas duradouras que aumentam a motivação biológica em direção à substância desejada, bem como a tolerância ao agente farmacológico, dependência psicológica e sintomas de abstinência quando a substância viciante está ausente.
O “lado sombrio” da neuroplasticidade é ainda evidenciado por diversos casos em que a reestruturação também resulta em dor, disrreflexia autonômica e outras consequências desfavoráveis relacionadas a lesões na medula espinhal. A literatura sugere que esses efeitos negativos da neuroplasticidade são mais comuns em certas condições do que em outras. Tratamentos ou condições que aumentam direta ou indiretamente as neurotrofinas, como o NGF (Nerve Growth factor) na medula espinhal, estão altamente correlacionados com a ocorrência de dor e disrreflexia autonômica, provavelmente devido aos potentes efeitos promotores de crescimento dessas moléculas.
Em resumo, compreender a neuroplasticidade constitui um dos objetivos mais populares entre os neurocientistas. Caso você tenha conseguido abrir sua mente e vislumbrar as sutilezas subjacentes à visão meramente positiva da plasticidade neurológica, já valeu a pena a leitura deste artigo. Tudo o que seu cérebro aprendeu, tanto de bom quanto de ruim, dependeu de alguma forma da neuroplasticidade. Compreendê-la representa talvez a melhor oportunidade para ser capaz de manejar, corrigir e desfrutar plenamente dos benefícios que ela proporciona.
Referências e Leitura Complementar:
- Mahncke, H. W., Bronstone, A., & Merzenich, M. M. (2006). Brain plasticity and functional losses in the aged: scientific bases for a novel intervention. Progress in Brain Research, 157, 81-109. ➞ Ler Artigo
- Møller, A. R. (2008). Neural plasticity: for good and bad. Progress of Theoretical Physics Supplement, 173, 48-65. ➞ Ler Artigo
- Brown, A., & Weaver, L. C. (2012). The dark side of neuroplasticity. Experimental Neurology, 235(1), 133-141. ➞ Ler Artigo
- Doidge, N. (2007). The brain that changes itself: Stories of personal triumph from the frontiers of brain science. Penguin. ➞ Ler Livro
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