Apesar de ser algo finito, o corpo humano continua a guardar segredos que a ciência pouco sonhava que existiam. Quando já se imaginava que todos os sistemas do corpo humano fossem conhecidos, foi descoberto mais um que se mostrou tão crucial quanto os demais: o sistema glinfático. Ainda envolto em mistérios, talvez você não tenha ouvido falar sobre ele. Mas, para sanar algumas dúvidas, escrevemos este artigo que explicará o que é esse sistema surpreendente e qual a sua importância no corpo humano.
O que é o ‘sistema glinfático’?
Se o nome lhe parece algo ao mesmo tempo familiar e estranho é porque ele é uma junção dos termos “glia” – que são as células do sistema nervoso central que auxiliam neurônios e executam outras funções – e “linfático” – o nome do sistema de drenagem distribuído por todo o corpo responsável por escoar líquidos e substâncias que não foram completamente drenados pelo sistema vascular.
A descoberta desse sistema veio de um conjunto de motivos. O primeiro deles era o mistério envolvendo a limpeza do cérebro. No corpo como um todo, o sistema linfático exerce a função de drenar excesso de líquido e metabólitos que sobram do metabolismo celular e que não tem mais função biológica. Em outras palavras, poderíamos chamar essas moléculas de “lixo metabólico” que, se acumulado, pode levar a disfunção dos tecidos em que se encontra. A questão é: o cérebro é um dos órgãos mais metabolicamente ativos do corpo, gastando grandes quantidades de energia por dia e, portanto, também produzindo grandes quantidades de metabólitos ao mesmo tempo em que é bastante sensível a eles. Porém, o tecido nervoso é o único de todo o corpo que não tem vasos linfáticos em sua composição (até mesmo as meninges os têm).
Por lógica, o cérebro, então, precisaria essencialmente de um sistema que executasse a mesma função do linfático mesmo que usando outras vias. Esse mistério foi entrelaçado a outro que ainda não é plenamente resolvido: qual a função do nosso sono? Apesar das várias teorias existentes, uma delas é a de que o sono serve como um momento de limpeza do cérebro, o que foi comprovado em estudos de neuroimagem. Logo, aí estavam as pistas de que o sistema nervoso teria também um “sistema linfático” que provavelmente seria formado por células da glia uma vez que elas que executam funções de suporte do tipo nesses tecidos. E então, após descobertas de como esse sistema funcionava, surgiu o termo “sistema glinfático”.
Como o sistema glinfático funciona e qual sua importância clínica?
O sistema nervoso como um todo é banhado em um líquido específico chamado líquido cefalorraquidiano (LCR) ou líquor. Ele é produzido, inicialmente, por células ependimárias presentes no revestimento interno dos ventrículos encefálicos e do canal medular e, daí, segue em movimento por convecção ao longo da meninge aracnoide. Em meio a esse movimento, o líquido ainda vai seguindo por espaços perivasculares localizados ao redor das artérias e arteríolas, delimitados pelos astrócitos (um dos tipos de células da glia).
O que acontece nesse ponto é que, motivado por mudanças de pressão gerados pela própria circulação sanguínea e até pela respiração, o LCR é empurrado através dos pés dos astrócitos chegando ao interstício (processo esse facilitado por alguns canais transportadores de água). Conforme as forças de convecção continuam a atuar, o líquido atravessa todo o parênquima cerebral e cai novamente nos espaços perivasculares – dessa vez, dos que envolvem as vênulas. A partir daí, o líquido continua seu trajeto até ser reabsorvido para o sangue nas granulações aracnóideas presentes adjacentes ao seio sagital.
A questão principal desse movimento é que, ao “lavar” o interstício cerebral, o LCR carrega consigo os ditos metabólitos tóxicos resultantes do funcionamento celular e, ao ser reabsorvido, os leva consigo para o sangue. A partir daí, essas substâncias podem ser devidamente eliminadas geralmente via fígado ou rins. Logo, o sistema glinfático tem a função crucial de manter o cérebro “limpo”, removendo componentes que, se acumulados, levam ao seu mau funcionamento e mesmo a doenças. Um exemplo: uma das proteínas eliminadas nesse processo é a beta-amiloide, cujo acúmulo é responsável pelo surgimento da demência de Alzheimer.
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Quais fatores interferem no funcionamento do sistema glinfático?
Vários elementos interferem no adequado funcionamento desse sistema. Como já citamos anteriormente, um dos mais cruciais é o sono. Inúmeras pesquisas já comprovaram que esse é o momento em que o glinfático funciona em seu máximo (alguns estudos mostraram que neurônios e células da glia chegam a reduzir de tamanho enquanto dormimos, teoricamente para facilitar o fluxo do LCR). Estudos também já mostraram que, após uma única noite de sono mal dormida, a quantidade de metabólitos acumulados no cérebro, incluindo a proteína beta-amiloide, é bem maior do que quando se dorme bem.
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Outro elemento muito importante é a realização regular de atividade física, que comprovadamente também melhora o funcionamento do glinfático e a depuração de tais substâncias tóxicas. A idade é outro fator relevante, já que o funcionamento desse sistema naturalmente diminui com o avançar dos anos, o que explicaria por que doenças neurodegenerativas são mais comuns na terceira idade. Mesmo assim, as pesquisas mostram que o sono adequado, exercício físico regular e outros hábitos de vida saudáveis são capazes de aumentar o fluxo de LCR no cérebro mesmo em pessoas idosas.
Ao contrário de tudo isso, doenças podem levar ao pior funcionamento do sistema glinfático. Os acidentes vasculares encefálicos (AVE) e os traumas cranioencefálicos (TCE) podem comprometer a arquitetura normal do cérebro ao ponto de atrapalhar o fluxo de LCR. E não só as doenças neurológicas têm esse poder. Doenças componentes da síndrome metabólica – no caso: obesidade, diabetes e hipertensão arterial – todas têm comprovações científicas como comprometedoras do funcionamento do glinfático, o que explicaria por que as doenças neurodegenerativas também são mais comuns nessas pessoas.
Perspectivas futuras
Apesar de tudo que já foi descoberto, o sistema glinfático ainda é relativamente novo no conhecimento médico e tem sido mais estudado por seus potenciais. Não só ele reforça como hábitos de vida saudáveis, em especial o sono, são importantes para manter a saúde neuropsicológica, mas também representa possibilidades em outros âmbitos. Seria possível usá-lo para diagnosticar precocemente demências e outras doenças neurodegenerativas? Ou seria ainda possível usá-lo como forma de tratamento para alguma delas? Essas e outras são perguntas promissoras que movem pesquisas em desvendar cada vez mais desse sistema misterioso e interessante.
Referências e Leitura Complementar:
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