Você provavelmente já se perguntou se o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) realmente existe. Talvez você tenha se perguntado, após ler em algum link divulgado pela imprensa livre da internet, o porquê de as crianças francesas não terem TDAH. Tudo não passa de uma doença inventada? O que realmente sabemos sobre o TDAH?
Você provavelmente já se perguntou se o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) realmente existe. Talvez você tenha se perguntado, após ler em algum link divulgado pela imprensa livre da internet, o porquê de as crianças francesas não terem TDAH. Se você chegou até aqui nesse texto, possivelmente, o que mais te impressionou sobre essas crianças, por muitos vistas como excessivamente peraltas e sem limites, é o fato do “criador” do transtorno ter dito que tudo não passou de uma doença inventada. Porém, quais são os fatos? O que sabemos sobre o TDAH?
O TDAH é um transtorno psiquiátrico que acomete cerca de 5,23% das crianças em todo o mundo, sem distinção social ou de localização geográfica. As causas do transtorno são multifatoriais, mas a base é essencialmente genética. Os genes envolvidos no transporte e recepção de dopamina são os principais investigados, porém a lista de genes candidatos é enorme. Sabidamente, grupamentos neuronais serotoninérgicos também estão envolvidos.
Esses genes regulam a ação da dopamina e serotonina, neurotransmissores que em suas vias neuronais atuam controlando o processo atencional, sobretudo no córtex pré-frontal, atuando sobre a função executiva, planejamento e memória de trabalho. Alguns fatores como exposição intrauterina a tabaco, baixo peso ao nascer, prematuridade, entre outros, são predisponentes para o desenvolvimento do transtorno e revelam a influência do ambiente sobre a manifestação disfuncional.
Philip Shaw, um dos grandes nomes na investigação do TDAH na modernidade, em estudos de ressonância magnética funcional, investiga o funcionamento cerebral das crianças com TDAH ao longo do cliclo vital e a influência do tratamento no desenvolvimento cerebral dos indivíduos. Dessa forma já se sabe que a espessura cortical dos indivíduos com TDAH é menor, além disso há uma redução no desenvolvimento dos giros cerebrais, representada por um atraso de maturação (Figura 1).
O mesmo pesquisador com sua equipe também têm avaliado a influência do tratamento ao longo da vida. Seus resultados mostram que o tratamento regular é capaz de propiciar um acerto nesse atraso de desenvolvimento cortical, beneficiando os indivíduos portadores da condição.
Contudo, não há ainda um exame que seja possível de diagnosticar o TDAH. Esses estudos que citamos, todavia, caminham para que essa realidade seja possível um dia. Assim como as outras disfunções em saúde mental, o TDAH tem o diagnóstico eminentemente clínico, mas isso não quer dizer que a doença não exista biológicamente.O mesmo acontece com muitas outras doenças psiquiátricas como Transtorno do Espectro Autista, Transtorno de Humor Bipolar, Depressão, entre outros.
TDAH não existe na França?
Por muitas vezes me deparei com algumas reportagens do jornalismo livre da internet exibindo manchetes algo sensacionalistas e revelando que o TDAH não existe na França, que a doença é inventada e tudo é uma grande balela. O estudo que citamos na abertura desse texto compilou mais de uma centena de trabalhos ao redor do mundo que procuravam saber qual a porcentagem de crianças com TDAH em seu território analisado. O resultado foi não haver distinção de prevalência do transtorno em relação ao território, logo, apenas pela conclusão desse grande trabalho já seria possível dizer que sim, o TDAH existe na França.
Todavia, ainda com a pulga atrás da orelha, busquei em bibliotecas virtuais, que chamamos de bases de dados, estudos acerca da prevalência de TDAH na França. Entre outros trabalhos, encontrei o estudo do francês Michel Lecendreux (2011). Esse estudo investigou a prevalência de diversas disfunções mentais, inclusive o TDAH, em crianças francesas incluindo 1012 famílias de todo o país. Os resultados não revelaram nenhuma surpresa, a prevalência do TDAH no país está entre 3,5% a 5,6%, o mesmo sugerido pelo primeiro estudo citado.
Um outro estudo conduzido por Villemonteix e sua equipe, publicado nesse ano, estudou o comportamento cerebral de crianças francesas com TDAH que nunca tiveram tratamento medicamentoso comparado a controles normais. O objetivo do estudo é comparar a diferença de volume de massa cinzenta nas crianças com TDAH do tipo combinado e controles normais. O resultado encontrado foi uma redução do volume me meninos com TDAH e um aumento do mesmo volume em meninas com TDAH quando comparados a crianças com desenvolvimento típico.
Dessa forma, o TDAH não só existe na França, como os cientistas franceses por meio de estudos de sua população têm contribuído para a compreensão do transtorno em níveis mais complexos do que a simples descrição de sintomas. O que pode ser especulado é a questão cultural no país, de maneira informal, ao ter um forte bloqueio para o uso de medicação em saúde mental na infância e adolescência. Esse, contudo, não é fato confirmado ou retratado na literatura científica regular.
“Inventor” do TDAH diz que tudo não passou de uma farsa?
Uma das coisas que mais me chamou a atenção nos últimos tempos foi um surto de reportagens nos veículos eletrônicos de notícias acerca de uma declaração do suposto inventor do TDAH dizendo que tudo não passou de uma doença “tipicamente inventada”.
A alcunha é atribuída pela mídia informal a Leon Eisenberg (1922-2009), um célebre psiquiatra da infância e adolescência que participou ativamente no desenvolvimento da compreensão da saúde mental infantil nos séculos XX e XXI. Supostamente, em uma de suas últimas entrevistas ele teria dito que o TDAH “é uma doença tipicamente inventada”.
Eu poderia questionar a afirmação de diversas maneiras, mas gostaria primeiro de dizer que em minhas pesquisas o único dado que encontrei sobre o assunto foi um grande número de reportagens parafraseadas, quase virais, comentando sobre essa frase, sem contudo citarem a entrevista original, que não encontrei de forma alguma. No geral, nas reportagens que encontrei a critica geral é sobre o excesso do diagnóstico e uso excessivo de medicação nos EUA – nesse país a realidade diagnóstica e terapêutica é muito divergente do que acontece no Brasil, de modo que não gostaria, aqui, de entrar nesse mérito, mas para uma compreensão ainda superficial do estado-da-arte tupiniquim sobre o assunto, sugiro a leitura da postagem anterior sobre a medicalização da educação. A suposta reportagem original estaria no The New York Times, jornal americano de grande impacto mundial. Pesquisando nos arquivos do jornal encontrei apenas a reportagem (com link no nome do jornal) acerca do falecimento de Eisenberg, e no corpo do texto apenas seus trabalhos com ênfase na compreensão do autismo foram evidenciados.
L’Étourdi é uma peça teatral de Jean Jacques Molière, escritor francês (que ironia), que descreve, em 1655, pelas atitudes do personagem central um quadro típico do que hoje seria TDAH. Ainda assim, a primeira descrição técnica de TDAH só foi surgir muito tempo depois, em 1775, pelo médico alemão Melchior Adam Weikard. Esse artigo foi resgatado em 2012 pela dupla Barkley e Peters. No trabalho, Weikard descreve um quadro nomeado desatenção que consistia em crianças pouco cautelosas, impulsivas, com dificuldades para finalizar um tarefa. Além disso, no século XVIII, Weikard já começava a achar que a prevalência disso estava aumentando, ou que o “pessoal de antigamente” era mais concentrado e que, talvez, a sociedade da época estivesse adoecendo os indivíduos, o que muitos dizem hoje, 240 anos depois. Talvez Weikard estivesse a frente de seu tempo. Não posso afirmar, mas, na verdade levanto a possibilidade de toda geração humana achar que o seu presente momento é uma geração de “perdidos”, um reforço coletivo à dificuldade intrínseca da natureza humana de enxergar as boas conquistas.
Depois disso muito se avançou na compreensão do transtorno que mudou diversas vezes de nome, ainda que o quadro clínico descrito seja sempre o mesmo. Em 1902, Geroge Still descreveu o quadro que ficou conhecido como “Deficiência do Controle Moral”. Entre 1930 e 1960, ficou conhecido o nome “Encefalite Letárgica” ou “Transtorno de Comportamento Pós-Encefalite”, por se achar que esse quadro fosse secundário a uma encefalite. A partir de 1962 o quadro passou a chamar “Doença Cerebral Mínima”, por não se achar nenhuma alteração cerebral estrutural macro ou microscópica em autópsias desses indivíduos. Apenas com o surgimento do Manual Diagnóstico e Estatístico de Doenças Mentais (DSM) os termos hipercinese (na 2ª edição) e desatenção (3ª edição) foram incluídos. A fusão dos dois sintomas no nome da síndrome ocorreu em 1987 com o revisão da 3ª edição do DSM surgindo o Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade, nome que perdura até hoje.
O curioso é que em toda a psiquiatria, até recentemente, as doenças eram investigadas e classificadas apenas por suas manifestações clínicas. Dessa forma, o TDAH passou a ser entendido, assim como depressão, TEA, entre outros, como uma doença de características dimensionais, que variam como a altura, de pessoa para pessoa. Mas dizer que há TDAH seria como afirmar se a pessoa é alta ou baixa, uma ação dependente de um parâmetro comparativo e estabelecimento de um ponto de corte. Num primeiro momento soaria como se inventássemos a doença, mas na verdade é o reflexo de uma incapacidade momentânea de investigar a biologia dos transtornos, o que não é mais uma realidade. Por isso, após o lançamento do DSM 5ª edição, a comunidade científica reforçou uma mudança de paradigma em saúde mental que vem se estabelecendo lentamente. Grandes agências que estimulam a pesquisa decidiram não mais apoiar investigações descritivas dos transtornos mentais, e sim aquelas que estudam as funções da mente e estabelecem padrões funcionais ou disfuncionais e investigam suas causas genéticas, ambientais e epiginéticas (influência do meio sobre a função dos genes). Essa iniciativa ficou conhecida como RDoC e escreverei sobre ela futuramente.
Mas onde surge a fala do Dr. Eisenberg nisso tudo? O Dr. Eisenberg, feliz ou infelizmente, não inventou ou descobriu o TDAH. Como tudo na ciência, muito esforço coletivo tem sido feito para compreender o cérebro, sua normalidade funcional e sua disfuncionalidade.O cientista em questão participou bravamente das edições passadas do DSM, sobretudo da 3ª, em que surgiu o nome TDAH, contudo não inventou a doença.
Ainda inquieto, achando que onde há fumaça há fogo, revirei as bibliotecas virtuais, dentre elas o PubMed para buscar algum fundamento para tantas reportagens sensacionalistas sobre as declarações de Eisenberg. Embora não tenha encontrado a tal entrevista, na literatura médica especializada encontrei esse artigo. Nesse texto, um de seus últimos publicados em vida, o Dr. Eisenberg faz uma reflexão histórica sobre o TDAH, semelhante a alguns dos comentários que fiz aqui, mas com alguns detalhes sabiamente colocados. O célebre pesquisador discute uma possível superestimação diagnóstica, e perspicaz, levanta o debate do estímulo da indústria farmacêutica, sem, contudo, atribuir esse quadro apenas a ela. Ele lembra que no início de sua carreira essas crianças eram vistas como portadoras de “cérebros sobrecarregados”. E esse quadro apresentado por elas passou de uma questão comportamental para uma questão orgânica, baseada no cérebro, quando a psiquiatria migrou de uma perspectiva psicanalítica para uma visão mais biológica da saúde mental. Isso gerou um grande conforto para os pais, que passaram a estar isentos da responsabilidade sobre problemas de comportamento apresentado pelos seus filhos. Além disso, questões políticas foram modificadas. Vagas em escolas ou sistemas avaliativos passaram a ser diferenciados para as crianças diagnosticadas, pela compreensão orgânica dos comportamentos apresentados.
A reflexão do notório psiquiatra é muito válida, e busca revelar que a “criação do transtorno” e o seu tratamento farmacológico não excluem de forma alguma o envolvimento familiar e compromisso social para melhorar o sofrimento dessas crianças e futuros adultos. Os pais, embora não tenham a responsabilidade de gerarem o transtorno, não estão isentos de cuidarem de seus filhos por meios muito maiores que a simples pílula diária. De mesmo modo, os pais de crianças neurotípicas, não devem atribuir a uma disfunção orgânica o reflexo de uma educação ineficiente.
A perspectiva do Dr. Leon Eisenberg é bastante profunda e relevante, mas creio que em nada se parece ao que tanto se tem levantado em torno de uma suposta declaração sua, muito maior que a única frase citada pela imprensa. A realidade norte americana diverge muito da brasileira, onde o sub e o superdiagnóstico caminham lado a lado com a desigualdade social, de modo que nós brasileiros não devemos cair em críticas cegas, acusando a inexistência do quadro. O TDAH, assim como depressão, TEA, esquizofrenia, TOC, TDO, entre outros transtornos, existe, não só no Brasil ou nos EUA, mas na França, África do Sul, Venezuela, China, Índia e todos os países do globo. Esses pacientes merecem nosso respeito e cuidado através do envolvimento familiar, inclusão social, medidas comportamentais e, inclusive, tratamento medicamentoso.
Referências Bibliográficas: Developmental Cognitive Neuroscience, Journal of Attention Disorders (1), Psychology Today, World Psychiatry, Journal of Child and Adolescent Psychopharmacology, Journal of Attention Disorders (2), Biological Psychiatry, Nature Genetics
Links dos artigos quebrados… Não consigo verificar/rastrear/confirmar a veracidade destas informações. Pena.
Também gostaria de ver as repostas ao usuário “Ruliger”, que postou comentário em 06/12/2017.