Brincar na rua pode auxiliar no desenvolvimento cognitivo, emocional e estimular as relações interpessoais da criança. Você é um “pai helicóptero”?
Um alerta aos pais helicópteros
A rua é um local perigoso, brincar lá não pode. Quantas crianças já não ouviram isso? Mariana tem dez anos e nunca brincou na rua do bairro da Aclimação em São Paulo. Quando é questionada se gosta de brincar na rua, ela responde, quase que automaticamente: “A rua é perigosa. A mamãe não deixa”. E se a rua não fosse perigosa, Mariana, você gostaria de brincar lá? Ela abre um sorriso e diz com toda firmeza: “Sim, sim, sim!!”.
Mariana é uma criança típica das grandes metrópoles. Ela não brinca na rua, somente na escola ou então no pequeno playground do condomínio do prédio em que mora. Ao bem da verdade, esses locais são os respiradouros atuais da infância moderna, é ali que os pais sentem segurança e deixam as crianças serem o que verdadeiramente são: curiosas e lúdicas. A mãe da Mariana confessa que é difícil desgrudar os olhos da filha. “Simplesmente eu tenho medo de que algo de ruim aconteça com ela. Eu amo minha filha e farei de tudo para que ela fique bem”. No playground é comum as crianças brincarem enquanto os pais as assistem, tiram fotos, falam para não fazer isso ou aquilo. Não existe necessidade (até fisiológica) que lhes façam tirar os olhos do filhote. Mas, e na escola? Há escolas, acredite, que disponibilizam imagens em tempo real do filho na escola. Um exército de câmeras é instalado em todos os cantos para o pai, do celular, acessar e supervisionar seu filho à distância.
Os pais são os culpados?
Um estudo da Universidade do Estado da Carolina do Norte mostrou que essa preocupação e fiscalização excessiva impede que as crianças se exercitem adequadamente, movimentando-se conforme o recomendado para a idade, impedindo um desenvolvimento saudável. Os cientistas cunharam o termo “pais helicópteros” (que pairam sobre seus filhos) para descrever esse comportamento de pais fiscalizadores e excessivamente preocupados. Para endossar a cultura dos pais aéreos, existe também o apelo das novas tecnologias, mais adequadas ao espaço da casa e do condomínio. Outro reforço que deixa as ruas, parques e demais espaços abertos mais distantes das crianças é a própria realidade atual, com muito mais automóveis e risco de atropelamento.
Essas alterações do espaço urbano têm consequências na preparação física das crianças, como a falta de movimento, e favorece condições como o aumento do peso e dificuldades em lidar com situações de risco. As crianças que não experimentam, que não se arriscam um pouquinho, podem mais tarde sofrer com isso. Talvez não desenvolvam as capacidades motoras adequadamente, não tenham equilíbrio, agilidade e poder de negociação para se safar dos desafios e problemas da vida real adulta.
[quote bar=”true” width=”800″]”Brincadeiras de rua permitem interação com outras faixas etárias”[/quote]
Sabe-se que jogos ao ar livre alargam o horizonte das percepções e limites entre o ser e espaço circundante, das sensações, emoções e movimento, maximizando a atividade cognitiva. A natureza lúdica dos jogos estimula o desenvolvimento do cérebro e, portanto, a cognição. A correlação positiva entre a prática de jogos e o desenvolvimento cerebral explica também porque o crescimento cognitivo é tão rápido durante a infância. Em todos os mamíferos as curvas de desenvolvimento do jogo e crescimento do cérebro se sobrepõem e alcançam pico na pré-adolescência, a fase de desenvolvimento caracterizada por um aumento exponencial das conexões sinápticas, do crescimento dendrítico e da mielinização das fibras nervosas, com o decorrente crescimento da capacidade funcional do cérebro. Embora especialistas em educação e neurociência reconheçam a importância proporcionada por jogos eletrônicos e desenhos animados, especialmente no desenvolvimento do pensamento virtual, recomendam que os filhos se reúnam com os amigos para, juntos, “soltarem” a imaginação divertindo-se com as tradicionais brincadeiras de rua.
Ao contrário do ambiente escolar e dos playgrounds fechados, que reúnem crianças da mesma idade e classe social, as brincadeiras de rua permitem interação social com outras faixas etárias – permitindo assim que as mais velhas ajudem e protejam as menores, o que incrementa o senso de responsabilidade e sociabilidade. A criança toma iniciativas, já que tais brincadeiras não têm regras rígidas. Assim sendo, a invenção de mudanças estimula a criatividade e favorece o desenvolvimento cognitivo saudável. É bem verdade que os pais têm como direito e dever resguardar a criança do perigo. O problema é quando esse resguardo se torna privativo, impede a criança de lidar com o risco propriamente dito.
E o cérebro com isso?
No caso da mãe de Mariana, ela deseja explicitamente que nada de ruim aconteça à filha. É admirável esse desejo de mãe, mas não é necessariamente disso que a criança precisa. O nosso cérebro aprende através das experiências e vivências com risco controlado. Este é fundamental para o seu pleno desenvolvimento. Por exemplo: a criança tem de aprender a cair e dominar o seu corpo; somente assim o seu cérebro aprenderá como evitar um futuro tombo. Subir em uma árvore pode ser uma atividade arriscada, mas ensina bastante o sujeito sobre coordenação motora, equilíbrio, controle emocional e tomada de decisão (entre pisar um galho ou outro). Brincar de esconde-esconde exige movimentação ativa do corpo, escolha do local para se esconder, controle da ansiedade, atenção sobre o movimento e comportamento do outro e muita agilidade para se salvar. Uma simples brincadeira de roda permite experimentar emoções e sensações, sentir o toque dos outros nas mãos favorece o sentimento de pertencimento à um grupo, a uma comunidade.
Essas experiências passam a ser orgânicas e não mentais. A criança que aprende vivenciando interioriza o aprendizado e sofre alterações cerebrais significativas. Por outro lado, pais helicópteros demonstram resistência a essas atividades e as percebem como perigo para seus filhos, ao invés de as entenderem como oportunidades para o desenvolvimento físico e cognitivo das crianças.
Brincar, segunda a evolução…
Biólogos e psicólogos evolucionistas acreditam que o ato de brincar seja uma adaptação ontogenética, ou seja, um sistema comportamental que melhora a adaptação do indivíduo nos estágios imaturos da vida. Há estudos que apontam uma correlação positiva entre as habilidades cognitivas e as brincadeiras. Assim sendo, se a criança não for exposta a brincadeiras e jogos lúdicos adequadamente, sua capacidade relacionada à resolução de problemas, habilidades sociais e desempenho acadêmico pode ficar comprometida. Isso porque as habilidades complexas que envolvem diversas áreas do cérebro são mais susceptíveis a se desenvolverem e prosperarem em um ambiente lúdico.
Nas brincadeiras, a criança aprende a negociar, entende que nem sempre é possível vencer, que a derrota é importante para se desenvolver uma nova estratégia e que há necessidade da ajuda do outro para executar uma tarefa ou resolver um problema. Ciente desses benefícios cognitivos, o Instituto Politécnico de Leiria, em Portugal, está desenvolvendo um projeto para incentivar as crianças mais novas a irem a pé para a escola, com o objetivo de pô-las a andar a fim de conhecer a cidade e outras crianças durante o percurso. A ideia é fomentar o encontro de crianças de diferentes faixas etárias e permitir que elas troquem experiências e que possam se sentir motivadas para brincar umas com as outras após as aulas. Mesmo diante dos perigos da rua, os coordenadores do projeto acreditam que o perigo real é não deixar as crianças se arriscarem. É como propor a construção de heliportos para os pais helicópteros, a fim de deixarem seus filhos realmente viverem a emoção do dia lá fora, mais distantes de suas hélices, dos seus medos e ansiedades.
Confira a 5ª edição da Revista MeuCérebro:
De fato, a rua é o melhor lugar para o indivíduo entrar em contato verdadeiramente com a cidade em que mora, é o caminho que o conecta à sociedade e que o faz enxergar-se como parte de uma comunidade viva e pulsante. No território da cidade, as ruas são os lugares das relações sociais por excelência e, se realmente primamos pelo desenvolvimento saudável das nossas crianças, vale a pena o empenho do poder público e da sociedade para ressignificar esses espaços, tornando-os próprios e adequados para aquele que caminha e não apenas para aquele que conduz o automóvel. Afinal, é na rua que, em grande parte, vivemos, crescemos e nos tornamos aquilo que somos.
Fonte: American Journal of Preventive Medicine.
Excelente matéria!