Muitas pessoas conhecem o famoso Neodarwinismo (a união entre a seleção natural de Darwin e a herança genética de Mendel) e o clássico conceito da “sobrevivência do mais adaptado”. Contudo, quando falamos de saúde mental, uma dúvida sempre permanece.
Os transtornos mentais não são, claramente, vantajosos e, ao que tudo indica, estariam presentes na humanidade desde seu início. Então, por que eles ainda ocorrem? Claro, o meio (o aspecto sócio-cultural da vida humana) tem papel crucial em seu desenvolvimento. Mas, se as culturas também foram se diversificando ao longo da evolução humana, poderiam os transtornos ter explicações evolutivas?
Bom, a psicologia e a psiquiatria evolutivas tentam sanar essas dúvidas.
A evolução humana: do surgimento à vida social
Desde seu surgimento, os mamíferos eram relativamente mal-adaptados a seus conterrâneos: não tinham mandíbulas e couraças fortes como os répteis predadores, não voavam como os pássaros e, assim, estavam sempre expostos a grande perigo. Como sobreviver, então, se não desenvolvendo o cérebro? Depois de muitos milhões de anos, os primeiros “humanos” da história surgiram: os “símios antropoides de andar ereto” ou Australopithecus. Desde então, precisaram da inteligência e criatividade para sobreviver aos desafios cotidianos (inclusive, com o manuseio e construção de ferramentas). Nem é preciso dizer que isso contribuiu muito para o desenvolvimento cerebral humano.
Acredita-se que, ao longo de sua passagem pelo planeta, um evento inesperado se impôs aos Australopithecus: suas crianças começaram a nascer prematuras. Autores sugerem que isso explicaria, por exemplo, porque os humanos de hoje têm uma aparência semelhante aos embriões de outros primatas (em especial pela escassez de pêlos). Para que essas crianças sobrevivessem, nossos antepassados precisaram formar parcerias, de forma a garantir sustento e sobrevivência dos indivíduos. Ao mesmo tempo, o uso do cérebro para tarefas gradualmente mais complexas facilitou o desenvolvimento de algumas atribuições únicas dos humanos, como a linguagem.
Una esses fatores e temos as primeiras tribos humanas. O processo continuou até cerca de 100.000 anos atrás, quando surgiu o Homo sapiens, já social, cultural e artisticamente muito desenvolvido (como podemos observar pelas famosas pinturas rupestres em várias cavernas ao redor do mundo).
Transtornos mentais como a depressão podem ter bases evolutivas?
A saúde mental na evolução
Os estudiosos do assunto sugerem várias teorias para o surgimento dos transtornos mentais. Alguns acreditam que eles sejam características adaptativas a diversas condições da vida primitiva, enquanto outros sugerem que, na verdade, os transtornos são efeitos colaterais ou subprodutos de outras mudanças adaptativas. As características, vantajosas ou não, dos transtornos teriam se originado pela união entre a seleção genética e a seleção social. Veja alguns exemplos:
Paranoia
Caracterizada por delírios de perseguição, o paciente com transtorno de personalidade paranoide acredita estar constantemente ameaçado por outras pessoas. Sua história evolutiva é muito parecida com a da obesidade. No passado, a grande escassez de alimentos poderia levar um indivíduo à morte, de forma que aqueles que conseguiam guardar energia na forma de gordura sobreviviam mais. Atualmente, com a grande oferta de alimentos e pequeno gasto energético, a vantagem evolutiva se tornou uma doença.
Da mesma forma, em um contexto de perigo constante na Terra primitiva (tanto por outros seres humanos quanto por grandes predadores), um indivíduo que se mantivesse mais atento e desconfiado do meio poderia sobreviver evitando essas ameaças. Atualmente, sem grandes animais nos perseguindo, essa habilidade evolutiva teria se voltado para situações apenas hipotéticas ou inofensivas, gerando um indivíduo com um medo constante e desnecessário de seu meio.
Depressão
Alguns estudiosos da psicologia evolutiva acreditam que a depressão é, na verdade, uma tática igualmente evolutiva de sobrevivência. Em um contexto de vida social e com o estabelecimento de hierarquias dentro de um grupo, a depressão seria uma forma de resguardar o indivíduo, evitando que entrasse em conflito com alguém mais forte e, assim, que sofresse maiores perigos ou danos. No contexto do grupo, isso ainda manteria uma “homeostase social”, diminuindo conflitos internos.
Esquizofrenia
A história evolutiva da esquizofrenia é bem controversa e misteriosa. O que instigou maiores estudos em torno do assunto foi o fato de que o transtorno, com uma base genética muito forte, ainda existe mesmo considerando-se que pouquíssimos dos pacientes com a condição chegam a ter filhos. Conclusão: é possível que os genes associados ao transtorno sejam, até certo nível, alguma vantagem evolutiva.
Um dado interessante que favorece essa ideia é o desempenho acadêmico dos parentes: parentes de indivíduos com esquizofrenia (ou mesmo os próprios pacientes antes do desenvolvimento do transtorno) costumam ter um desempenho exemplar em matérias que envolvam artes, pensamento divergente e outras habilidades relacionadas à criatividade. Como se pode imaginar, em um mundo em que sua principal proteção é seu cérebro, criatividade é vital. Acredita-se que, na evolução humana, genes relacionados a alta flexibilidade de pensamento e criatividade teriam sido selecionados e que, como um subproduto indesejado, a esquizofrenia poderia ter se desenvolvido em alguns indivíduos.
A permanência da esquizofrenia até os dias atuais evidencia outra parte da evolução entrelaçada aos fatores genéticos. Nas sociedades tribais, em que a noção de espiritualidade e religião estavam se desenvolvendo, os quadros de psicose poderiam ser mesmo bem vistos e, assim, socialmente selecionados. Exemplo: as alucinações e delírios dariam aos esquizofrênicos a função de xamãs e líderes religiosos, tornando-os socialmente bem aceitos.
Fontes: A Teia da Vida, Schizophrenia Bulletin, Psychopathology